São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A questão do desemprego

ALOIZIO MERCADANTE

A implantação no Brasil das políticas de liberalização comercial e financeira, de privatização e de desregulamentação da economia, iniciada no governo Collor e acelerada na gestão FHC, foi acompanhada por mudanças na estrutura e na dinâmica do mercado de trabalho que transformaram o desemprego em um dos problemas centrais da sociedade brasileira contemporânea. E, para quem anda pela rua e conversa com a população, como faço, o desemprego não é um número abstrato; pelo contrário, tem cara, tem nome, significa redução da renda da família, perda de auto-estima e de cidadania, degradação humana e desagregação familiar.
Desde o pós-Guerra até a crise da década de 80, as tendências dominantes, associadas ao modelo de industrialização substitutiva, eram encaminhadas no sentido do crescimento do emprego e da formalização do mercado de trabalho. O novo padrão de emprego que se perfila nos anos 90, especialmente em sua segunda metade, representa uma inflexão nessa trajetória: as tendências centrais agora são o aumento do desemprego e a precarização crescente das condições de trabalho. Embora sejam parciais e fragmentários, os dados disponíveis são eloquentes.
Os níveis de desemprego prevalecentes na atualidade -8,2% em julho passado, em média, no conjunto das seis regiões metropolitanas cobertas pelas pesquisas do IBGE- só são comparáveis aos verificados durante o auge da recessão do início dos anos 80, quando o PIB chegou a cair 4,25% (1981). Note-se que a metodologia utilizada pelo IBGE tende a subestimar o desemprego efetivo (as taxas de desemprego aberto captadas pelo Dieese são 30% a 40% superiores; além disso, o Dieese registra também o desemprego oculto e o desalento, fazendo com o que sua taxa de desemprego global seja quase o dobro das estimativas do IBGE). Mas, ainda assim, é clara a tendência à elevação do patamar de desemprego, que, de uma média abaixo de 4% na segunda metade dos anos 80, salta para 5% entre 1990 e 1995 e para 7,5% nos últimos sete anos. Ou seja, o crescimento do desemprego é paralelo à intensificação das políticas neoliberais, que engessaram o crescimento econômico, desestruturaram a produção nacional e destruíram ou transferiram para o exterior milhares de postos de trabalho.
Os efeitos dessas políticas se refletem também na evolução de algumas variáveis consideradas nas pesquisas mensais do IBGE. Entre julho de 1991 e julho de 2002, por exemplo, a população economicamente ativa (PEA) das regiões metropolitanas aumentou 22%, enquanto a ocupação cresceu 17% e a população desocupada aumentou 144%.
Outros estudos tendem a confirmar o alto nível alcançado pelo desemprego nos anos recentes. O Censo de 2000 detectou um contingente de 11,7 milhões de trabalhadores desempregados, o que equivaleria a uma taxa de desemprego de 14,6% (supondo uma PEA em torno de 80 milhões de pessoas). Pesquisa recentemente realizada por instituição privada, com uma metodologia centrada nos domicílios, chegou a resultados ainda mais espantosos: 39% dos domicílios brasileiros abrigariam famílias com problemas de emprego, o que significa que as pessoas maiores de 16 anos sem ocupação fixa seriam aproximadamente 28,7 milhões. Como 51% desse total procura trabalho e não faz bicos (o que, na metodologia do IBGE, caracteriza a situação de desemprego), teríamos cerca de 14,6 milhões de desempregados, uma taxa de desemprego aberto de 18,3%. Comparem-se essas cifras com os 3,5 milhões de desempregados que, estima-se, existiriam em 1994.
Paralelamente aumentou o tempo de procura de emprego -de 14,3 semanas em julho de 1991 para 24,2 semanas em julho de 2002-, segundo o IBGE. Outros estudos indicam que o tempo médio durante o qual o trabalhador permanece desempregado atinge atualmente 51 semanas.
A precarização das condições de emprego através de diversos mecanismos -como a informalização do mercado de trabalho, a terceirização de atividades anteriormente desenvolvidas com pessoal próprio, o aumento não compensado da jornada de trabalho, a troca de direitos trabalhistas pela manutenção do emprego- avançou em velocidade similar. Até fins da década de 80, o número de trabalhadores com carteira assinada, embora com oscilações, tendia a aumentar em termos absolutos. Na década de 90, essa trajetória se inverteu, com o que o emprego formal, que em 1991 representava 53,1% do total de ocupados, caiu para 44,6% em 2002. Em contrapartida, o número de empregados sem carteira assinada aumentou, em termos absolutos, 54,2% no mesmo período. E aumentou também o número de trabalhadores autônomos.
Em resumo, além do desemprego aberto, aumentou também o peso dos segmentos que abrigam ocupações de baixa produtividade e remuneração e sem proteção social, que cresceram muito mais rapidamente do que os empregos de boa qualidade e a ocupação total. Em conjunto, os trabalhadores sem carteira e por conta própria representam hoje 49,9% do total de ocupados (contra 41,3% em 1991).
Nessas circunstâncias, é muito difícil entender de que maneira a continuidade da atual política econômica, exigida pelo "mercado financeiro" e seus agentes políticos, poderia ser compatível com uma evolução positiva do mercado de trabalho. Superar os problemas de desemprego e precarização supõe não só retomar o crescimento mas também incorporar o emprego e a inclusão social como critérios essenciais da política econômica e reforçar o papel do Estado no planejamento e na implementação de políticas e investimentos direcionados especificamente a essa finalidade. Ora, tudo isso é completamente contrário à orientação do atual modelo econômico.
Como é óbvio, não há soluções mágicas para o problema do emprego. O próximo governo herdará fortes restrições nas áreas fiscal e externa, que constituem um sério entrave para que o país possa expandir sua capacidade de geração de empregos e ampliar a proteção social aos trabalhadores. Apesar disso, é possível avançar progressivamente nessa direção. A mudança da política econômica vigente é o ponto de partida essencial para desencadear esse processo e, em uma perspectiva de longo prazo, garantir a todos os brasileiros o direito ao trabalho e a uma vida digna.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet:
www.mercadante.com.br
E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br


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