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São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Macroeconomia para o Natal

JOÃO SAYAD

Às vésperas do Natal, quero oferecer um presente difícil aos leitores de colunas de economia. Pretendo explicar a origem das divergências entre os economistas.
Primeiro, as concordâncias. Todos concordamos que só existe desemprego em economias monetárias, isto é, que usam dinheiro. Só o dinheiro permite que você não gaste, não compre ou não invista e que sobre alguma coisa: cebolas que agricultores jogam no rio São Francisco, automóveis nos pátios das montadoras ou gente que quer trabalhar e não encontra emprego.
Concordamos também que dinheiro só é importante em economias capitalistas. Só economias capitalistas usam dinheiro. Logo, só em economias capitalistas existe desemprego. Esquimós ou ianomâmis não usam dinheiro e não têm desemprego.
A concordância pára ai. Agora, vamos às discordâncias.
Os conservadores -economistas clássicos, monetaristas, novos clássicos ou neoliberais- acham que dinheiro é apenas um expediente, uma invenção prática que facilita compras e vendas, uma espécie de vale-refeição ou passe escolar.
O preço do dinheiro (o famoso índice geral de preços) é fixado como qualquer outro preço. Um presidente do Banco Central do Brasil afirmou, por exemplo, que a taxa de câmbio (o preço do dólar) era um preço fixado como o preço da banana. Muito dinheiro, a moeda se desvaloriza. Pouco dinheiro, a moeda se valoriza.
Para os conservadores, como o prof. Friedman da Universidade de Chicago, as pessoas trabalham para viver, e não vivem para trabalhar. Quem trabalha para ganhar dinheiro sofre de ilusão monetária. Os modelos dos conservadores supõem que o mundo é racional.
Os personagens dos modelos clássicos parecem "hippies" que, depois de uma refeição equilibrada (macrobiótica?) e um "cigarrinho", responderiam sorrindo: "Não, obrigado, não quero mais nada, estou bem assim", e deitariam na grama de Woodstock para ouvir os Rolling Stones.
No início do século, os conservadores chamavam os desempregados de vagabundos. Depois, o desemprego foi batizado de "natural" como as estações do ano. Hoje, decorre da falta de educação, embora os bem-educados estejam executando tarefas que não exigem a educação que adquiriram e muitos estejam desempregados.
Economistas críticos -keynesianos, pós-keynesianos, marxistas- acham que o dinheiro é instituição de origem sagrada e misteriosa, como o Estado, a família ou o casamento. O valor da moeda depende da eficácia do Estado (capacidade de aprovar e fazer valer as leis), dos frágeis laços de confiança que caracterizam a moderna sociedade de indivíduos e, principalmente, de muita ilusão monetária. Para que o valor do dinheiro seja estável, isto é, para que não haja inflação, é preciso que haja paixão pelo dinheiro. Os apaixonados não pedem explicações.
Para os economistas críticos, o mundo é irracional e as pessoas vivem apenas para trabalhar e ganhar dinheiro, mesmo que não saibam o que fazer com ele. Sem dinheiro estável, a economia não funciona, assim como um cassino não funciona sem fichas e cacifes.
Os personagens dos modelos dos economistas críticos são jogadores aflitos que, sentados à volta da mesa da roleta, acumulam cada vez mais fichas de plástico brilhante sem saber por quê. O importante é ganhar cada vez mais. Não sabem o que fazer com tanto dinheiro nem por que querem cada vez mais dinheiro em vez de bens.
O desemprego é filho da paixão desenfreada pelo dinheiro. Produzir dinheiro não requer mão-de-obra nem capital -basta papel e tinta. Acumular dinheiro, diferentemente de construir pirâmides ou fazer guerras, gera desemprego.
A solução não é fácil. Não existe cassino sem cacifes e fichas brilhantes. Se não existir dinheiro de valor estável, a economia não funciona e, no limite, paralisa. Se o dinheiro tiver valor estável e for excessivamente desejado por todos, o desemprego aumenta.
Aqui acabam as diferenças entre os dois pontos de vista. Agora vêm as contradições.
Os economistas conservadores, que atribuem "ilusão monetária" a quem trabalha apenas para ganhar dinheiro, idolatram o dinheiro quando estão no governo. As taxas de juros são altas e, diante do risco de qualquer inflaçãozinha, aumentam os juros e criam desemprego. A política dos conservadores transforma os "hippies" de suas teorias em adoradores de dinheiro.
Quando economistas críticos estão no governo, aumenta o receio da inflação. Todos temem ficar com dinheiro na mão, investem mais e o desemprego diminui. Transformam os jogadores em investidores que adoram produzir bens.
A única solução possível é encontrar ministros e presidentes de banco central que usem ternos escuros, falem como conservadores e ajam como economistas críticos. A equipe econômica precisa ser contraditória porque o mundo é contraditório.
A teoria dos clássicos funciona apenas durante a ceia de Natal, quando cessa, por poucas horas, a paixão pelo dinheiro e trocam-se presentes, beijos e votos de feliz Natal.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net




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