São Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

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LUÍS NASSIF

A fama de mau

A decisão do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central) de anteontem é relevante para pensar nos limites da tão falada autonomia do Banco Central. Manteve-se a taxa de juros inalterada, apesar da progressão fulminante da dívida interna.
Qual a justificativa? Alguém aventou que seria a eventualidade de um repique nos preços. Especialistas em preços disseram que as altas deste mês são tópicas, que não se sustentam.
A renda continua caindo, o desemprego continua alto, a capacidade ociosa da indústria continua elevada. Mas alguém levantou a hipótese de que, mantido o ritmo de crescimento da atividade econômica, no final do ano poderia se bater no limite da capacidade instalada.
O próprio mercado, vendo a abundância da entrada de dólares, vendo preços estáveis e atividade econômica recém-saída da UTI, apostava na queda dos juros. E nada ocorreu.
O que leva a essa alienação? Há quem suponha que tenham sido comentários que circularam há algumas semanas, de que o Banco Central teria começado a recompor reservas -depois de negativas reiteradas de seu presidente- por pressão de cima. A reação do BC teria sido demonstrar, com a decisão de anteontem, que não se curva a ninguém.
Há quem suponha que seja a vaidade vazia, de quem cai no canto de sereia da comunidade financeira internacional, para quem dureza é sinal de competência.
O BC atua como o juiz que condena todos os réus para ganhar fama de durão. Ou como o crítico que desanca todas as peças para ganhar fama de severo. Quem é permanentemente rígido não é puro, é despreparado, sem critérios, por não saber diferenciar situações.
A irresponsabilidade fiscal do BC está aí, à mostra, mas não é cobrada. Anteontem, o pai dessa tal de metas inflacionárias publicou artigo dizendo que a bonança na área externa está deixando o governo desleixado. Onde? Na regulação das agências e em outros temas microeconômicos. Esse pessoal virou tudo especialista permanentemente preocupado com a microeconomia. Cabeças de planilha que jamais conseguiram formular conceitos a partir de observação do mundo real de repente se tornam extraordinariamente preocupados com a microeconomia. E tudo para fugir da questão essencial: como será possível criar mecanismos de revitalização da economia com essa política monetária extraordinariamente irresponsável?
Esse pessoal tem a planilha. Como avalia a progressão da dívida pública à luz dessa irresponsabilidade do BC? Ou, na sua augusta opinião, o BC não tem que se preocupar com as conseqüências fiscais da política monetária?
Se amanhã ocorrer o estouro da manada, por conta do aumento dos juros, mais uma vez jogará a culpa na irresponsabilidade fiscal do governo? Como justificará, se está sendo cortado dinheiro da saúde, da educação, da infra-estrutura e nem assim se consegue pagar essa carga de impostos?
Como justificar que um país quebrado, miserável, possa se dar ao luxo de permitir que um grupo de despreparados mantenha os juros nesse nível, contra a opinião até do próprio mercado, apenas para preservar sua fama de mau (conforme matéria de ontem neste mesmo caderno da Folha)?

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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