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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A oportunidade

LUCIANO COUTINHO

A economia brasileira tem a oportunidade -depois de 22 anos de crise- de retomar as condições para o crescimento sustentado. Não se trata, porém, de uma oportunidade certa e dada de bandeja. Vejamos. Apesar do ônus desnecessário e elevado -mercê da incompetência da política econômica da era FHC-, há uma chance de ser conservada a estabilidade de preços, hoje ameaçada. A conservação dessa conquista que tão caro custou ao país ainda cobrará sacrifícios adicionais em 2003, a saber: juros altos, crescimento reprimido, mercado de trabalho deteriorado, esperanças frustradas a curto prazo. Esses sacrifícios adicionais poderão ser agravados se a deplorável guerra no Iraque se prolongar e provocar nas economias centrais mais desalento financeiro, mais cautela dos consumidores e tensões renovadas sobre o preço do petróleo.
De outro lado, há hoje um regime fiscal muito mais sólido em decorrência da violenta escalada tributária praticada pelo governo FHC (aumento de nove pontos percentuais do PIB). É possível, por isso, gerar um superávit fiscal primário elevado ainda que este, infelizmente, seja esterilizado para cobrir os tremendos encargos financeiros sobre a dívida pública decorrentes da prática de uma taxa de juros ainda lamentavelmente alta.
O fato novo é que a conjugação dessa solidez fiscal com a possibilidade de evitar o retorno da inflação indexada e alta tem agora um aliado poderoso: uma taxa de câmbio substancialmente depreciada nos dois últimos anos sob os impactos da crise de energia, do default da Argentina e do terrível bloqueio financeiro ao Brasil no ano passado. Por um lado, essa depreciação cambial (acumulada em 110% em termos reais desde dezembro de 1998), ao provocar fortes pressões de custos, veio ameaçando a estabilidade de preços, mas, por outro, contribuiu decisivamente para corrigir o déficit externo. Em 2003, o déficit em conta corrente pode se reduzir a apenas US$ 2,5 bilhões com a obtenção de um superávit comercial de US$ 18 bilhões ou mais dependendo da evolução da economia mundial. Alguns arautos do oficialismo sobrevivente da era FHC já se apressam em cacarejar, levianamente, que a vulnerabilidade externa estaria superada.
Falso! Não há garantia de sustentação do superávit comercial à medida que a economia volte a crescer, reativando a necessidade de importar insumos e, crescentemente, bens de capital para novos investimentos. Os levianos ignoram os efeitos cíclicos. Grande parte do ajuste da balança comercial em 2002 decorreu de uma queda de 15% nas importações e de um aumento de apenas 3,7% nas exportações. A queda das importações foi, em larga medida, uma consequência da retração da economia e, adicionalmente, de processos setorialmente heterogêneos de substituição de importações provocados pela depreciação cambial. Houve, por exemplo, notável substituição de importações no setor de petróleo. Houve também alguma substituição de importações em cadeias como têxtil-vestuário, calçados, eletrodomésticos, material elétrico leve, autopeças, papel e gráfica. Resta, porém, o desafio de aprofundar a substituição de importações em cadeias fortemente deficitárias como a eletrônica (componentes, equipamentos de telecomunicações, equipamentos de informática), química (fármacos-farmacêutica, defensivos, plásticos e resinas, produtos inorgânicos) e segmentos competitivamente viáveis de bens de capital.
Sublinhe-se que, além de acelerar a substituição de importações, é urgente iniciar, imediatamente, investimentos de grande escala em setores competitivos superavitários para viabilizar a sustentação do saldo comercial. Em várias cadeias, essa resposta positiva virá espontaneamente a partir de investimentos de rápida maturação, especialmente nos agronegócios e nos setores industriais leves. Advirta-se, porém, que, nas cadeias competitivas intensivas em capital, existem casos críticos de elevada utilização da capacidade instalada que logo chegarão a estrangulamentos de oferta que tornarão incompatível o abastecimento do mercado interno e o simultâneo aumento das exportações, desatando pressões inflacionárias. Nesses casos, o deslanche de investimentos privados depende de políticas setoriais que permitam reduzir riscos e custos de capital e ainda robustecer a escala e a estrutura dos grupos econômicos de capital nacional. Encontram-se nessa situação cadeias como a siderúrgica, a de celulose-papel, a metalurgia de não-ferrosos, a de placas e aglomerados de madeira e a de borracha.
Em suma, a conquista da oportunidade de retomar o crescimento sustentado requer visão de longo prazo. Requer que, além do enfrentamento dos desafios macroeconômicos de curto prazo, seja engendrada uma firme e consistente política de desenvolvimento competitivo.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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