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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um recurso sempre desgraçado

RUBENS RICUPERO

De modo inesperado para um estadista típico do século 19, vivendo em meio à loucura belicista que precedeu a Primeira Guerra Mundial, o Barão do Rio Branco declarou, em certa ocasião: "O recurso à guerra é sempre desgraçado". A afirmação é peremptória e não admite exceções. Não nega o legítimo direito de defesa ou proteção aos nacionais. Escrevo no dia 21, cem anos exatamente após a assinatura em La Paz do "modus vivendi" que reconheceu a ocupação provisória do Acre por tropas brasileiras, a fim de separar os bolivianos dos rebeldes de Plácido de Castro. Rio Branco, que estava na origem da decisão, admitia circunstâncias excepcionais como essa.
Por sorte, não se chegou a choques armados com os vizinhos, mas poderia ter-se chegado. Mesmo em tais extremidades, para o chanceler, a guerra teria sido uma desgraça, como seria sempre, isto é, em qualquer caso. Foi por acreditar de verdade no que dizia -não como os que trazem a guerra no coração e "slogans" publicitários de paz nos lábios- que o Barão conseguiu evitar o conflito e assinar o Tratado de Petrópolis, de que celebraremos, em 17 de novembro, o centenário.
É essa a verdadeira glória de um país como o nosso, o único dos cinco "países-monstros" -os outros são os EUA, a China, a Rússia, a Índia- que não é potência nuclear nem potência de qualquer tipo. O único, também, entre os que possuem muitos ou poucos vizinhos -e, em nosso caso, são dez e já foram 11- que se orgulha não de uma parafernália tecnológica capaz de matar inimigos com precisão cirúrgica, não de superbombas ou de armas atômicas sujas ou limpas, não de Arcos do Triunfo construídos com dor e sangue, mas simplesmente de título que oxalá não perca nunca: o de viver em paz com os seus vizinhos há mais de 133 anos ininterruptos, desde que se encerrou, em 1º de março de 1870, sua última e infausta guerra nacional, a da Tríplice Aliança.
Não vou falar do que agora se passa no Iraque, pois nada sei a respeito. Há dias, desde que começou "essa maldita guerra" -para lembrar a frase do Barão de Cotegipe, a propósito da Guerra do Paraguai-, confesso não ter ânimo de ler jornais, escutar o rádio e muito menos de olhar a TV. Tenho repugnância invencível diante da guerra ao vivo, em direto, pornografia que me parece pior que a do sexo mecânico e degradado. Às vezes, quando passo diante de um aparelho ligado, percebo de relance a visão fantasmagórica de uma Bagdá irreal, iluminada pela bruxoleante luz esverdeada dos cemitérios, entrecortada pelas explosões dos ataques.
Fico imaginando como se sentem aterrorizados aqueles pobre seres humanos, crianças, mulheres, velhos, gente humilde, sofredora, encolhidos nos frágeis porões das pobres casas, à espera de que os bombardeios cessem antes que eles se transformem em estatísticas de "danos colaterais inevitáveis", certamente lamentados pelos vitoriosos. Tento refugiar-me em trabalhos inadiáveis ou inventados, busco algum sentido na leitura dos Salmos. Pouco a pouco, sinto invadir-me o desalento, a angústia, a desesperança de uma tristeza infinita, que corrói o desejo de viver. O que me consola é a reação de indignação e revolta quase unânimes na Europa, as manifestações espontâneas de jovens, adolescentes, colegiais, a afirmação da vida contra a morte.
Tenho lembrado muito, nestes últimos tempos, o episódio ocorrido na Universidade de Salamanca em 12 de outubro de 1936, celebração da Festa da Raça, no início da Guerra Civil Espanhola. O general Millán Astray, sinistro personagem, fundador da Legião, sem um olho e um braço que havia perdido no Marrocos, fez um discurso insultuoso para catalães e bascos, invocando em certa passagem a morte, "noiva da Legião". O reitor, d. Miguel de Unamuno, representando naquele ato a Franco, ao qual havia aderido, na presença da primeira-dama, não se conteve e declarou, alto e bom som: "Acabo de ouvir o grito necrófilo e sem sentido de Viva a Morte! Isso me soa o mesmo que Morra a Vida! E eu, que passei toda a vida criando paradoxos que causaram o desagrado dos que não os compreenderam, devo dizer-lhes, como autoridade na matéria, que esse ridículo paradoxo me parece repelente. (...) O general Millán Astray é um inválido de guerra (...) Também o foi Cervantes (...). Desgraçadamente, há hoje em dia demasiados inválidos na Espanha e logo haverá mais, se Deus não nos ajuda (...). Um inválido que careça da grandeza espiritual de Cervantes (...) costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de inválidos ao seu redor (...). O general Millán Astray (...) desejaria ver a Espanha mutilada, como inconscientemente deu a entender". Nesse ponto, o general bradou: "Morra a inteligência".
Já que estou em veia de evocação histórica, não custa continuar a transcrever esse episódio exemplar nas lições que encerra para os tempos que correm. Primeiro, as palavras com que o velho filósofo começou a reagir às provocações do general: "Calar significa às vezes mentir porque o silêncio poderia interpretar-se como aquiescência. Eu não poderia sobreviver a um divórcio entre minha consciência e minha palavra, que sempre formaram um par perfeito". E as célebres palavras finais, verdadeiras no tempo de Unamuno e no nosso. "Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque vos sobra força bruta. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E, para persuadir, necessitais de algo que vos falta: razão e direito de luta."


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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