São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Dois tempos da democracia recente

MARCIO POCHMANN

O brasil não possuiu uma cultura democrática consolidada. Dos seus mais de 500 anos de história, não há registro, ainda, de meio século, pelo menos, de experiência política ancorada na plenitude democrática.
As duas décadas de democracia completadas em 2005 constituem o mais longo período desde a Revolução de 30. O que existia, até então, não passava de regimes políticos censitários, com votos de apenas e tão-somente homens ricos, deixando de fora 98% da população, que se compunha de mulheres (ricas ou não) e de homens pobres.
A recente fase democrática no Brasil, que se iniciou durante o final do regime militar, em 1985, e persiste até os dias de hoje, pode ser dividida em, pelo menos, dois tempos distintos. Entre 1985 e o início de 1989, por exemplo, o Brasil percorreu um período democrático que apresentou resultados sensivelmente distintos dos verificados no segundo período da democracia recente, a partir de 1989.
Diante do final do governo Figueiredo, que se encontrava submerso numa grave crise da dívida externa -responsável pelo estrangulamento do antigo padrão de financiamento do ciclo de industrialização nacional-, o amplo conjunto de forças políticas pró-democracia reuniu duas concepções muito divergentes sobre a possível construção de um projeto democrático de desenvolvimento nacional. De um lado, havia o leque majoritário de forças que reunia um conjunto de gerações de militantes social-democratas dos anos 50 e de reformistas dos anos 70, e, de outro, os grupos políticos mais vinculados ao liberal-conservadorismo proveniente do segundo pós-guerra.
Nos primeiros anos da transição democrática, coube à composição política majoritária a tentativa de instauração de um novo padrão de financiamento da economia nacional, capaz de viabilizar o ciclo de desenvolvimento com inclusão social. Avanços significativos nesse sentido foram dados, especialmente com a Constituição Cidadã de 1988, que se tornou responsável pelas bases formais do novo modelo de bem-estar social condizente com os requisitos do Brasil moderno, justo e democrático.
No campo econômico, contudo, os fracassos foram sendo acumulados, gerando comprometimentos na materialidade das mudanças sociais. O malogro do Plano Cruzado, em meio à conjuntura internacional desfavorável (enorme escassez de liquidez externa), aliado ao insucesso da criação de uma grande holding no interior do setor produtivo estatal, impossibilitou a abertura de fontes renovadas para o financiamento do crescimento econômico sustentável e ajudou a prolongar a década perdida nos anos 80.
Em razão disso, a então maioria política comandada por históricos social-democratas e reformistas recentes passou a ser esvaziada. Contraditoriamente, a aprovação da Constituição de 1988 -isolada de um novo ciclo de desenvolvimento econômico- terminou desencadeando, simultaneamente, o fortalecimento de uma nova maioria política, agora formada pelo liberal-conservadorismo do segundo pós-guerra e pela adesão recente dos neoliberais dos anos 90.
O sucesso dessa nova articulação política resultou, a partir de 1989, na construção de um novo modelo econômico assentado na privatização do setor produtivo estatal e na reinserção do Brasil na economia mundial enquanto produtor de commodities dependentes do baixo custo da mão-de-obra (padrão de emprego asiático). Da mesma forma, o êxito do combate inflacionário somente se verificou viável mediante a contínua transferência de recursos públicos (serviços do endividamento) aos antigos ganhadores do processo inflacionário.
Com o Plano Real, a privatização do setor público, o aumento da carga tributária e o contingenciamento do gasto social se transformaram em normas a serem perseguidas pelos governos de plantão, escravos -em maior ou menor medida- do novo modelo econômico que se funda na regressão social. Por conta disso, a Constituição Federal tem sido crescentemente identificada com um obstáculo ao avanço da materialidade do próprio modelo econômico e social neoliberal.
As sucessivas e variadas reformas implementadas a partir do governo Collor não têm tido outros motivos que não sejam o rebaixamento do padrão de proteção social até os níveis exigidos pelo contínuo avanço do modelo econômico dominante no Brasil. Resta saber, todavia, até quando o segundo tempo da democracia recente poderá ser suportado pelo conjunto da população, uma vez que aumenta o descontentamente social, cada vez mais favorável à implantação de qualquer regime político que se apresente como suficiente para melhorar a condição de vida do homem comum.


Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.


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