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OPINIÃO ECONÔMICA
Dois tempos da
democracia recente
MARCIO POCHMANN
O brasil não possuiu uma
cultura democrática consolidada. Dos seus mais de 500 anos
de história, não há registro, ainda,
de meio século, pelo menos, de
experiência política ancorada na
plenitude democrática.
As duas décadas de democracia
completadas em 2005 constituem
o mais longo período desde a Revolução de 30. O que existia, até
então, não passava de regimes políticos censitários, com votos de
apenas e tão-somente homens ricos, deixando de fora 98% da população, que se compunha de
mulheres (ricas ou não) e de homens pobres.
A recente fase democrática no
Brasil, que se iniciou durante o final do regime militar, em 1985, e
persiste até os dias de hoje, pode
ser dividida em, pelo menos, dois
tempos distintos. Entre 1985 e o
início de 1989, por exemplo, o
Brasil percorreu um período democrático que apresentou resultados sensivelmente distintos dos
verificados no segundo período
da democracia recente, a partir de
1989.
Diante do final do governo Figueiredo, que se encontrava submerso numa grave crise da dívida
externa -responsável pelo estrangulamento do antigo padrão
de financiamento do ciclo de industrialização nacional-, o amplo conjunto de forças políticas
pró-democracia reuniu duas concepções muito divergentes sobre
a possível construção de um projeto democrático de desenvolvimento nacional. De um lado, havia o leque majoritário de forças
que reunia um conjunto de gerações de militantes social-democratas dos anos 50 e de reformistas dos anos 70, e, de outro, os
grupos políticos mais vinculados
ao liberal-conservadorismo proveniente do segundo pós-guerra.
Nos primeiros anos da transição democrática, coube à composição política majoritária a tentativa de instauração de um novo
padrão de financiamento da economia nacional, capaz de viabilizar o ciclo de desenvolvimento
com inclusão social. Avanços significativos nesse sentido foram
dados, especialmente com a
Constituição Cidadã de 1988, que
se tornou responsável pelas bases
formais do novo modelo de bem-estar social condizente com os requisitos do Brasil moderno, justo
e democrático.
No campo econômico, contudo, os fracassos foram sendo acumulados, gerando comprometimentos na materialidade das mudanças sociais. O malogro do Plano Cruzado, em meio à conjuntura internacional desfavorável
(enorme escassez de liquidez externa), aliado ao insucesso da
criação de uma grande holding no
interior do setor produtivo estatal, impossibilitou a abertura de
fontes renovadas para o financiamento do crescimento econômico sustentável e ajudou a prolongar a década perdida nos anos 80.
Em razão disso, a então maioria
política comandada por históricos social-democratas e reformistas recentes passou a ser esvaziada. Contraditoriamente, a aprovação da Constituição de 1988
-isolada de um novo ciclo de desenvolvimento econômico- terminou desencadeando, simultaneamente, o fortalecimento de
uma nova maioria política, agora
formada pelo liberal-conservadorismo do segundo pós-guerra e
pela adesão recente dos neoliberais dos anos 90.
O sucesso dessa nova articulação política resultou, a partir de
1989, na construção de um novo
modelo econômico assentado na
privatização do setor produtivo
estatal e na reinserção do Brasil na
economia mundial enquanto
produtor de commodities dependentes do baixo custo da mão-de-obra (padrão de emprego asiático). Da mesma forma, o êxito do
combate inflacionário somente se
verificou viável mediante a contínua transferência de recursos públicos (serviços do endividamento) aos antigos ganhadores do
processo inflacionário.
Com o Plano Real, a privatização do setor público, o aumento
da carga tributária e o contingenciamento do gasto social se transformaram em normas a serem
perseguidas pelos governos de
plantão, escravos -em maior ou
menor medida- do novo modelo econômico que se funda na regressão social. Por conta disso, a
Constituição Federal tem sido
crescentemente identificada com
um obstáculo ao avanço da materialidade do próprio modelo econômico e social neoliberal.
As sucessivas e variadas reformas implementadas a partir do
governo Collor não têm tido outros motivos que não sejam o rebaixamento do padrão de proteção social até os níveis exigidos
pelo contínuo avanço do modelo
econômico dominante no Brasil.
Resta saber, todavia, até quando o
segundo tempo da democracia
recente poderá ser suportado pelo
conjunto da população, uma vez
que aumenta o descontentamente
social, cada vez mais favorável à
implantação de qualquer regime
político que se apresente como
suficiente para melhorar a condição de vida do homem comum.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia
do Trabalho da Universidade Estadual de
Campinas.
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