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São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O primeiro dever do Estado

PAULO RABELLO DE CASTRO

As piores crises financeiras de qualquer economia jovem são as de origem cambial. Os exemplos recentes (México, Coréia do Sul, Indonésia, Brasil e Argentina) e históricos (Alemanha, 1919, Brasil, 1962) se multiplicam à nossa vista para mostrar que a fragilidade nos pagamentos internacionais e a vulnerabilidade do caixa de um país sempre cobram um preço altíssimo aos cidadãos residentes, convocados a pagar a conta no final da crise. Mário Henrique Simonsen lembrava, a propósito, que "a inflação aleija, mas o balanço de pagamentos mata".
Ninguém escapa quando bate à porta a escassez de recursos em moeda forte. É como ser pego por um agente externo mórbido com as defesas imunológicas do corpo em baixa. Por isso é essencial a manutenção, pelo governo, de reservas internacionais sempre em níveis mais do que satisfatórios para enfrentar os momentos de eventual escassez de divisas, provocadas por alguma desconfiança do mercado, que alguns continuam a chamar de aumento do risco-país.
A posição das reservas em moeda forte é particularmente crítica quando o país não flutua sua moeda, mas mantém uma paridade fixa. Foi a situação enfrentada pelo Brasil na largada do Plano Real, quando a maré de euforia começou a virar e sobreveio a crise asiática seguida da crise russa, entre 1997 e 98. O que parecia ser uma reserva brasileira confortável foi rapidamente sugado pelas saídas bruscas de capitais de curto prazo. Com a flutuação da taxa de câmbio, a partir de 1999, esse risco de fuga em massa de capitais se transferiu para a própria cotação do real, como aconteceu em 2001, à altura da queda das torres do WTC e, mais forte ainda, na crise financeira-eleitoral de 2002.
Nesse último ano, o que submergiu foi o poder de compra do brasileiro, agravado pelo processo de aceleração inflacionária, com a queda do ritmo da atividade produtiva. Em bom português, na crise de divisas, com câmbio flutuante, a conta é paga à vista, sob a forma de empobrecimento interno, com salários correndo atrás do custo de vida, desemprego e perda de acesso a bens importados. Basta ver a consequência do que estamos sentindo desde 2002, com quedas brutais (de 10% ou mais) do poder de compra, desemprego recorde e redução quase geral da indústria e do comércio.
Mas alguém lembrará, corretamente, que a desvalorização rápida do câmbio produz também um sinal forte para a recuperação das exportações e contenção das importações, logo contribuindo para a correção da escassez de divisas e a recomposição da confiança e do nível de atividade. Entretanto, nas situações da vida real, surgem as distorções para complicar o quadro da recuperação. Por exemplo, quando um governo como o atual, recém-chegado, se sente constrangido pela mídia e pelos setores beneficiários, detentores do capital, a praticar taxas de juro muito acima do ponto de equilíbrio, para mostrar "conservadorismo" e "rigor", traz de volta uma nova apreciação da moeda, reinjetando na economia um viés recessivo pelos juros altos e pelo risco de nova crise do câmbio.
O caso brasileiro é mais peculiar, ainda, por envolver um governo fortemente endividado em dólares, já que emite papéis de dívida atrelados à variação do câmbio, o que aumenta muito o seu grau de exposição financeira, qualquer que seja sua posição bruta em reservas. Estas, por sua vez, são hoje compostas de elevado percentual de empréstimos do FMI, na casa dos 60%, que funcionam numa emergência qualquer, como um colchão para pagamentos aos credores externos.
Portanto quem olha superficialmente a posição das reservas brasileiras, da ordem de US$ 47 bilhões, não percebe que, destes, cerca de US$ 30 bilhões serão logo devolvidos ao FMI e outros US$ 4 bilhões são dívida brasileira recomprada, restando pouco mais que US$ 13 bilhões para confrontar um passivo potencial (em dívida interna dolarizada) equivalente a US$ 60 bilhões. Em poucas palavras, o Brasil tem sido um sofrível administrador de sua vulnerabilidade. Cada vez que é escorraçado pelo capital internacional, a volatilidade do câmbio no Brasil torna-se exagerada, exatamente por não termos reservas satisfatórias.
Portanto o custo de não carregar reservas adequadas -uma responsabilidade primordial dos governantes- tem sido pago sob a forma de dezenas de bilhões de reais em atividade econômica não-realizada e, sobretudo, por aceleração da própria inflação que queremos combater.
Mas, se essa variável-chave do equilíbrio macroeconômico é tão crucial, por que não é levada em consideração, por exemplo, no mesmo grau de importância das metas inflacionárias, tão ao gosto do Banco Central? Provavelmente porque aqui repetimos as fórmulas de administração monetária ditadas pelo modismo internacional (nada demais, nem nada de novo nisso), ao preço de nos esquecermos de avaliar se o "modelito" é apropriado ao nosso corpinho subcalórico.
O primeiro dever do Estado num país pobre, embora de grande potencial, deveria ser caprichar, até exagerar na proteção ao seu "caixa" em moeda forte. No entanto há muitos anos teimamos na enganosa fórmula de ficar pendurados no socorro externo...


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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paulo@rcconsultores.com.br


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