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OPINIÃO ECONÔMICA
O primeiro dever do Estado
PAULO RABELLO DE CASTRO
As piores crises financeiras
de qualquer economia jovem são as de origem cambial. Os
exemplos recentes (México, Coréia do Sul, Indonésia, Brasil e Argentina) e históricos (Alemanha,
1919, Brasil, 1962) se multiplicam
à nossa vista para mostrar que a
fragilidade nos pagamentos internacionais e a vulnerabilidade
do caixa de um país sempre cobram um preço altíssimo aos cidadãos residentes, convocados a
pagar a conta no final da crise.
Mário Henrique Simonsen lembrava, a propósito, que "a inflação aleija, mas o balanço de pagamentos mata".
Ninguém escapa quando bate à
porta a escassez de recursos em
moeda forte. É como ser pego por
um agente externo mórbido com
as defesas imunológicas do corpo
em baixa. Por isso é essencial a
manutenção, pelo governo, de reservas internacionais sempre em
níveis mais do que satisfatórios
para enfrentar os momentos de
eventual escassez de divisas, provocadas por alguma desconfiança
do mercado, que alguns continuam a chamar de aumento do
risco-país.
A posição das reservas em moeda forte é particularmente crítica
quando o país não flutua sua
moeda, mas mantém uma paridade fixa. Foi a situação enfrentada pelo Brasil na largada do
Plano Real, quando a maré de euforia começou a virar e sobreveio
a crise asiática seguida da crise
russa, entre 1997 e 98. O que parecia ser uma reserva brasileira
confortável foi rapidamente sugado pelas saídas bruscas de capitais de curto prazo. Com a flutuação da taxa de câmbio, a partir de
1999, esse risco de fuga em massa
de capitais se transferiu para a
própria cotação do real, como
aconteceu em 2001, à altura da
queda das torres do WTC e, mais
forte ainda, na crise financeira-eleitoral de 2002.
Nesse último ano, o que submergiu foi o poder de compra do
brasileiro, agravado pelo processo
de aceleração inflacionária, com
a queda do ritmo da atividade
produtiva. Em bom português, na
crise de divisas, com câmbio flutuante, a conta é paga à vista, sob
a forma de empobrecimento interno, com salários correndo
atrás do custo de vida, desemprego e perda de acesso a bens importados. Basta ver a consequência
do que estamos sentindo desde
2002, com quedas brutais (de 10%
ou mais) do poder de compra, desemprego recorde e redução quase geral da indústria e do comércio.
Mas alguém lembrará, corretamente, que a desvalorização rápida do câmbio produz também
um sinal forte para a recuperação
das exportações e contenção das
importações, logo contribuindo
para a correção da escassez de divisas e a recomposição da confiança e do nível de atividade. Entretanto, nas situações da vida
real, surgem as distorções para
complicar o quadro da recuperação. Por exemplo, quando um governo como o atual, recém-chegado, se sente constrangido pela mídia e pelos setores beneficiários,
detentores do capital, a praticar
taxas de juro muito acima do
ponto de equilíbrio, para mostrar
"conservadorismo" e "rigor", traz
de volta uma nova apreciação da
moeda, reinjetando na economia
um viés recessivo pelos juros altos
e pelo risco de nova crise do câmbio.
O caso brasileiro é mais peculiar, ainda, por envolver um governo fortemente endividado em
dólares, já que emite papéis de dívida atrelados à variação do
câmbio, o que aumenta muito o
seu grau de exposição financeira,
qualquer que seja sua posição
bruta em reservas. Estas, por sua
vez, são hoje compostas de elevado percentual de empréstimos do
FMI, na casa dos 60%, que funcionam numa emergência qualquer, como um colchão para pagamentos aos credores externos.
Portanto quem olha superficialmente a posição das reservas brasileiras, da ordem de US$ 47 bilhões, não percebe que, destes,
cerca de US$ 30 bilhões serão logo
devolvidos ao FMI e outros US$ 4
bilhões são dívida brasileira recomprada, restando pouco mais
que US$ 13 bilhões para confrontar um passivo potencial (em dívida interna dolarizada) equivalente a US$ 60 bilhões. Em poucas
palavras, o Brasil tem sido um sofrível administrador de sua vulnerabilidade. Cada vez que é escorraçado pelo capital internacional, a volatilidade do câmbio
no Brasil torna-se exagerada,
exatamente por não termos reservas satisfatórias.
Portanto o custo de não carregar reservas adequadas -uma
responsabilidade primordial dos
governantes- tem sido pago sob
a forma de dezenas de bilhões de
reais em atividade econômica
não-realizada e, sobretudo, por
aceleração da própria inflação
que queremos combater.
Mas, se essa variável-chave do
equilíbrio macroeconômico é tão
crucial, por que não é levada em
consideração, por exemplo, no
mesmo grau de importância das
metas inflacionárias, tão ao gosto
do Banco Central? Provavelmente porque aqui repetimos as fórmulas de administração monetária ditadas pelo modismo internacional (nada demais, nem nada de novo nisso), ao preço de nos
esquecermos de avaliar se o "modelito" é apropriado ao nosso corpinho subcalórico.
O primeiro dever do Estado
num país pobre, embora de grande potencial, deveria ser caprichar, até exagerar na proteção ao
seu "caixa" em moeda forte. No
entanto há muitos anos teimamos na enganosa fórmula de ficar
pendurados no socorro externo...
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br
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