|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Do Brasil sem saída à nação da esperança
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY
Ao assistir a "Cidade de
Deus", de Fernando Meirelles, fiquei com a sensação de que
é preciso fazer alguma coisa com
urgência para mudarmos a realidade. Em tantos bairros com situações sociais semelhantes, nas
grandes metrópoles brasileiras, as
crianças e os adolescentes, diante
das dificuldades de seus pais terem acesso a atividades econômicas regulares que lhes possam
prover o necessário para viver
com dignidade, não encontram
outra saída que não a convivência com a marginalidade, o narcotráfico e a violência.
Essa situação ocorre na Cidade
de Deus ou no morro do Alemão,
no Rio de Janeiro, onde foi assassinado o jornalista Tim Lopes,
quando estava investigando o
que faziam os jovens nos bailes
funk. Também nas áreas periféricas de São Paulo, onde os adolescentes cantam as músicas de rap
dos Racionais MC's, como "Homem na Estrada", de Mano
Brown, em que descrevem seu cativeiro:
"Equilibrado num barraco incômodo, mal-acabado e sujo,
Porém seu único lar, seu bem e
seu refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no
quintal,
Por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é
onde estou."
O cerceamento à liberdade dos
brasileiros, expresso em sua arte
pelos compositores populares, parece assim estar se agravando, inclusive em relação ao que foi tão
bem dito pelo poeta cearense Patativa do Assaré (1903-2002), numa das mais belas canções que o
sertanejo Luiz Gonzaga cantava,
"Triste Partida", sobre a saga dos
nordestinos:
"Meu Deus, meu Deus,
Faz pena o nortista
Tão forte e tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul"
O que deve ser feito para ampliar significativamente o grau de
liberdade dos brasileiros, condição vital para que o desenvolvimento faça sentido, como afirmam os economistas Amartya
Sen, em "Desenvolvimento como
Liberdade", e Philippe Van Parijs,
em "Liberdade Real para Todos:
O que (se existe algo) pode justificar o capitalismo?". Tenho a convicção de que, ao lado de outros, a
Renda Básica Incondicional ou
Renda de Cidadania será um instrumento fundamental de política econômica capaz de ampliar o
grau de liberdade de que nos falam esses economistas, bem como
o Patativa do Assaré e o Mano
Brown. Um número crescente de
economistas têm compreendido
que, se assegurarmos o direito
inalienável a toda pessoa, não
importa a sua origem, raça, sexo,
idade, condição civil ou socioeconômica, de receber uma modesta
renda, suficiente para a sua subsistência, estaremos dando um
passo para expandir o crescimento econômico, as oportunidades
de trabalho, a equidade na distribuição da renda e tornar mais
competitiva a economia.
Durante a Rio+10, realizada
em Johannesburgo, soube que, na
África do Sul, desde 1998, formou-se a Basic Income Grant Coalition, uma coligação de dez instituições que incluem desde a principal central sindical, a Cosatu,
até o Conselho das Igrejas da
África do Sul, as quais propugnam pela instituição de uma renda básica. O próprio governo do
presidente Thabo Mbeki designou um comitê interministerial
que concluiu seus trabalhos neste
ano, com a recomendação explícita de instituir em breve naquele
país uma renda básica incondicional. Para os sul-africanos, foi
uma notícia alvissareira saber
que no Brasil, com problemas tão
graves de desigualdade quanto o
deles e com grau de desenvolvimento semelhante, existe a sincera vontade, como explicitada no
programa de governo de Lula, de,
quando houver condições fiscais,
se instituir uma renda básica de
cidadania.
No 9º Congresso Internacional
da Basic Income European Network, Bien, Rede Européia da
Renda Básica, realizado de 12 a
14 de setembro em Genebra, na
sede da Organização Internacional do Trabalho, 200 representantes de todos os continentes
apresentaram estudos de como
avançam as experiências de programas de renda mínima. Um
dos trabalhos mais relevantes foi
o que mostrou os efeitos redistributivos do sistema de dividendos,
proporcionados pelo Fundo Permanente do Alasca, durante a década de 90. Pois nesse Estado
americano foi instituída, desde
1980, uma experiência pioneira
de renda básica, que é paga a todos os seus residentes. No Alasca,
segundo dados do Economic Policy Institute, o fato de se distribuírem igualmente a todos os habitantes, por dez anos, 6% de seu
PIB aumentou em 28% a renda
das famílias do quinto mais pobre, enquanto a renda das famílias do quinto mais rico aumentou em 7%. Em contraste, para
todos os EUA, no mesmo período,
o aumento da renda do quinto
mais pobre foi de 12%, comparado a 26% para o quinto mais rico.
São muitos os que na Bien têm
cumprido o papel descrito na parábola relatada por Philippe Van
Parijs à Folha logo após brilhante
palestra realizada em agosto último na USP. Ao ser indagado sobre o que achava da possibilidade
de ser instituída uma renda básica incondicional a partir de 2005,
conforme dispõe projeto que tramita no Senado, respondeu que
havia visto numa praça de Montevidéu a estátua de um gaúcho
tocando um carro de bois. O carro
de bois estava inclinado, encalhado. Era preciso que uma pessoa
cavasse para tirar o carro do buraco e depois fosse à frente, olhando o caminho, para evitar que o
veículo encalhasse outra vez. Esse
é o trabalho de tantos que assimilaram as proposições contidas em
meu livro "Renda de Cidadania -
a saída é pela Porta", que estão
ajudando a dar esperança às pessoas desta nação. Nas palavras de
Philippe Van Parijs: "Você precisa dizer que é para amanhã, a fim
de que as coisas andem".
As crianças da "Cidade de
Deus" merecem crescer numa terra sem males.
Eduardo Matarazzo Suplicy, 61, senador (PT-SP), líder do bloco de oposição,
professor da Eaesp-FGV, Ph.D. em economia pela Universidade Estadual de Michigan, é autor do livro "Renda de Cidadania - a Saída é pela Porta", Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo (2002,
2ª edição). Os trabalhos da Bien podem
ser acessados no site www.bien.be.
Texto Anterior: Ganho acumulado de líder é de 79,16% Próximo Texto: Em transe: Poder do BC de intervir no dólar cai até 76% em 2003 Índice
|