São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Do Brasil sem saída à nação da esperança

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Ao assistir a "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, fiquei com a sensação de que é preciso fazer alguma coisa com urgência para mudarmos a realidade. Em tantos bairros com situações sociais semelhantes, nas grandes metrópoles brasileiras, as crianças e os adolescentes, diante das dificuldades de seus pais terem acesso a atividades econômicas regulares que lhes possam prover o necessário para viver com dignidade, não encontram outra saída que não a convivência com a marginalidade, o narcotráfico e a violência.
Essa situação ocorre na Cidade de Deus ou no morro do Alemão, no Rio de Janeiro, onde foi assassinado o jornalista Tim Lopes, quando estava investigando o que faziam os jovens nos bailes funk. Também nas áreas periféricas de São Paulo, onde os adolescentes cantam as músicas de rap dos Racionais MC's, como "Homem na Estrada", de Mano Brown, em que descrevem seu cativeiro:
"Equilibrado num barraco incômodo, mal-acabado e sujo,
Porém seu único lar, seu bem e seu refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal,
Por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde estou."
O cerceamento à liberdade dos brasileiros, expresso em sua arte pelos compositores populares, parece assim estar se agravando, inclusive em relação ao que foi tão bem dito pelo poeta cearense Patativa do Assaré (1903-2002), numa das mais belas canções que o sertanejo Luiz Gonzaga cantava, "Triste Partida", sobre a saga dos nordestinos:
"Meu Deus, meu Deus,
Faz pena o nortista
Tão forte e tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul"
O que deve ser feito para ampliar significativamente o grau de liberdade dos brasileiros, condição vital para que o desenvolvimento faça sentido, como afirmam os economistas Amartya Sen, em "Desenvolvimento como Liberdade", e Philippe Van Parijs, em "Liberdade Real para Todos: O que (se existe algo) pode justificar o capitalismo?". Tenho a convicção de que, ao lado de outros, a Renda Básica Incondicional ou Renda de Cidadania será um instrumento fundamental de política econômica capaz de ampliar o grau de liberdade de que nos falam esses economistas, bem como o Patativa do Assaré e o Mano Brown. Um número crescente de economistas têm compreendido que, se assegurarmos o direito inalienável a toda pessoa, não importa a sua origem, raça, sexo, idade, condição civil ou socioeconômica, de receber uma modesta renda, suficiente para a sua subsistência, estaremos dando um passo para expandir o crescimento econômico, as oportunidades de trabalho, a equidade na distribuição da renda e tornar mais competitiva a economia.
Durante a Rio+10, realizada em Johannesburgo, soube que, na África do Sul, desde 1998, formou-se a Basic Income Grant Coalition, uma coligação de dez instituições que incluem desde a principal central sindical, a Cosatu, até o Conselho das Igrejas da África do Sul, as quais propugnam pela instituição de uma renda básica. O próprio governo do presidente Thabo Mbeki designou um comitê interministerial que concluiu seus trabalhos neste ano, com a recomendação explícita de instituir em breve naquele país uma renda básica incondicional. Para os sul-africanos, foi uma notícia alvissareira saber que no Brasil, com problemas tão graves de desigualdade quanto o deles e com grau de desenvolvimento semelhante, existe a sincera vontade, como explicitada no programa de governo de Lula, de, quando houver condições fiscais, se instituir uma renda básica de cidadania.
No 9º Congresso Internacional da Basic Income European Network, Bien, Rede Européia da Renda Básica, realizado de 12 a 14 de setembro em Genebra, na sede da Organização Internacional do Trabalho, 200 representantes de todos os continentes apresentaram estudos de como avançam as experiências de programas de renda mínima. Um dos trabalhos mais relevantes foi o que mostrou os efeitos redistributivos do sistema de dividendos, proporcionados pelo Fundo Permanente do Alasca, durante a década de 90. Pois nesse Estado americano foi instituída, desde 1980, uma experiência pioneira de renda básica, que é paga a todos os seus residentes. No Alasca, segundo dados do Economic Policy Institute, o fato de se distribuírem igualmente a todos os habitantes, por dez anos, 6% de seu PIB aumentou em 28% a renda das famílias do quinto mais pobre, enquanto a renda das famílias do quinto mais rico aumentou em 7%. Em contraste, para todos os EUA, no mesmo período, o aumento da renda do quinto mais pobre foi de 12%, comparado a 26% para o quinto mais rico.
São muitos os que na Bien têm cumprido o papel descrito na parábola relatada por Philippe Van Parijs à Folha logo após brilhante palestra realizada em agosto último na USP. Ao ser indagado sobre o que achava da possibilidade de ser instituída uma renda básica incondicional a partir de 2005, conforme dispõe projeto que tramita no Senado, respondeu que havia visto numa praça de Montevidéu a estátua de um gaúcho tocando um carro de bois. O carro de bois estava inclinado, encalhado. Era preciso que uma pessoa cavasse para tirar o carro do buraco e depois fosse à frente, olhando o caminho, para evitar que o veículo encalhasse outra vez. Esse é o trabalho de tantos que assimilaram as proposições contidas em meu livro "Renda de Cidadania - a saída é pela Porta", que estão ajudando a dar esperança às pessoas desta nação. Nas palavras de Philippe Van Parijs: "Você precisa dizer que é para amanhã, a fim de que as coisas andem".
As crianças da "Cidade de Deus" merecem crescer numa terra sem males.


Eduardo Matarazzo Suplicy, 61, senador (PT-SP), líder do bloco de oposição, professor da Eaesp-FGV, Ph.D. em economia pela Universidade Estadual de Michigan, é autor do livro "Renda de Cidadania - a Saída é pela Porta", Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo (2002, 2ª edição). Os trabalhos da Bien podem ser acessados no site www.bien.be.


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