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OPINIÃO ECONÔMICA
Que nos baste o sonho
RUBENS RICUPERO
Catedral de Monterrey,
missa das 7h, terça-feira, 19,
dia de são José. Para minha surpresa, metade ou mais da vasta
nave é ocupada por mexicanos
humildes, homens e mulheres
com bandeiras e fitas vermelho-e-branco no pescoço. Descubro que
passaram a noite em oração e
aquele fervor me lembra: "The
Power and the Glory", de Graham Greene, as perseguições da
época de Calles e Cárdenas contra
os "cristeros". Na capital das maquiladoras, cidade industrial a
pequena distância da fronteira de
San Antonio, no Texas, a inconfundível personalidade cultural
mexicana afirma-se com todo o
vigor de suas tradições populares
e religiosas. O sacerdote fala pouco e bem de são José, homem justo, o servidor fiel e prudente que
renunciou ao seu próprio projeto
de vida porque, disse, "José tuvo
un sueño y el sueño le bastó".
Conclama os presentes a que lhes
baste o sonho deles.
Saí pensando como a frase se
aplicava aos que viemos para a
Conferência de Financiamento
ao Desenvolvimento e temos de
contentar-nos com resultado pasteurizado, documento do mais
mínimo denominador comum a
fim de tornar possível a participação do FMI e dos EUA. Essa conferência nasceu de resolução
apresentada, anos atrás, pelo
Brasil, com papel decisivo desempenhado por meu colega Sérgio
Florêncio, que teve de enfrentar
não poucos dissabores e incompreensões de parte de nossas próprias autoridades. Desejava-se
discutir as crises financeiras que
se amiudavam com critério mais
generoso do que o dos países credores que dominam o Fundo Monetário. Nada mais natural para
isso que reatar com a idéia original de Franklin Roosevelt, para o
qual Bretton Woods, que viu nascer o FMI e o Banco Mundial, e
San Francisco, berço da ONU,
eram metades complementares
da ordem nova a ser edificada sobre os escombros da guerra. Nela,
paz e segurança políticas, de um
lado, estabilidade e prosperidade
econômicas, do outro, deveriam
condicionar-se e reforçar-se mutuamente.
Já se havia tentado retomar a
inspiração inicial com as "Negociações Globais Multilaterais" da
época dos choques petrolíferos,
mas, em Cancún, no limiar dos
anos 80, Reagan sepultou a idéia
com pá de cal. Dessa feita, a sorte
foi um pouco melhor. A moderação dos países em desenvolvimento na ONU, os efeitos do 11 de setembro, a necessidade de levar em
conta o movimento de contestação à globalização selvagem
aconselharam a aceitar o debate,
desde que ele não pusesse em perigo o controle que as grandes potências continuam a exercer nessas matérias.
O preço a pagar foi alto. Teve de
renunciar-se a discutir de frente o
caráter sistêmico de crises financeiras que se repetem a intervalos
cada vez mais curtos, indicando
que algo de podre existe em sistema que produz crises quase com a
mesma regularidade com que a
bananeira dá bananas. Esqueceu-se de reformar a arquitetura
financeira até que a próxima crise faça cair o telhado. Ninguém
insistiu inconvenientemente na
iniquidade e anacronismo de
processo decisório que traduz a
relação de forças do fim da Segunda Guerra Mundial, concentrando mais de 60% do poder de
voto em mãos dos ricos e dando
pouca voz no capítulo aos subdesenvolvidos, sobretudo os que só
alcançaram mais tarde a descolonização.
Sem embargo, o saldo é modestamente positivo. Pela primeira
vez reconheceu-se que as crises financeiras, os desequilíbrios do
sistema comercial, o endividamento esmagador, a miserabilidade da ajuda aos pobres possuem dimensões sociais e políticas
e têm de permanecer na agenda
das Nações Unidas. O importante
foi colocar um pé na porta para
impedir que ela nos fosse de novo
fechada na cara. Será preciso ampliar essa fresta passo a passo, enfrentando os problemas que se
evitaram agora, com agenda que
equilibre os interesses de credores
e devedores, dos que podem dar e
dos que necessitam receber.
Não podendo tomar decisões de
substância porque todas as matérias concretas -moeda, câmbio,
financiamentos, ajuda, negociações comerciais- pertencem a
instituições independentes como
o FMI, o Banco Mundial, a OMC
e os países doadores, a conferência tinha de concentrar-se em tentar melhorar a coerência entre essas organizações e delas com os
objetivos humanos e sociais que
lhes são superiores.
Nada tem, nesse sentido, mais
pungência e urgência do que a
tragédia argentina. Nos cinco minutos de meu discurso, evoquei-a
três vezes. Primeiro, para mostrar
que o financiamento ao desenvolvimento, longe de ser questão técnica ou abstrata, é problema capaz de causar desespero e dor a
milhões de seres humanos. Para
chamar a atenção, em seguida, à
crueldade do tratamento reservado a um país que, por não ter importância estratégica nem ter sido
até agora capaz de contagiar os
vizinhos, foi escalado como o
exemplo mais fácil para aplicação de castigo exemplar que sirva
de escarmento aos demais.
Finalmente, para denunciar a
imoralidade dos que punem um
povo inteiro -milhões de homens, mulheres e crianças honestos e inocentes- devido a desvarios de política econômica de governantes anteriores, tolerados e
até elogiados durante anos pelos
mesmos que se arrogam hoje o
papel de açoite dos vícios e palmatória das fraquezas alheias.
Desejar ter um dia um sistema financeiro mais solidário e humano será talvez um sonho, mas é
sonho que me basta.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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