São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Poder e dinheiro

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

As trocas de acusações de uso indevido da coisa pública ocupam um espaço cada vez maior no debate político, sobretudo nos períodos de competição eleitoral. Isso acontece, em grande medida, porque nunca foram tão íntimas as relações entre a política e os negócios. Alguém pedirá a palavra para repetir que a corrupção é inerente à natureza humana. Pode ser, mas também é possível demonstrar que, em certos momentos da história recente, as crenças, os valores, as práticas predominantes na sociedade -a ética, diria Hegel, e não os arroubos de moralismo narcisista- conseguiram acuar a corrupção nos becos escuros da vida social.
Os que estudam o fenômeno da generalização das práticas ilícitas e ilegais não têm nenhuma dúvida em apontar como causa mais importante a infiltração corrosiva da lógica do dinheiro em todas as esferas da vida social. Max Weber, por exemplo, o sociólogo preferido do presidente Fernando Henrique Cardoso, notava que o sistema social e político do capitalismo seria submetido a tensões insuportáveis na ausência de uma burocracia pública cujos valores maiores fossem a honra, a dignidade, o status, o sentido de dever para com a comunidade. Por isso era necessário que fossem concedidos a essa camada os "privilégios" da independência funcional, da irredutibilidade dos vencimentos, da garantia de permanência no cargo (que poderia ser suspensa no caso de falta grave), do direito a uma aposentadoria especial. Em compensação, o acesso a esses cargos seria obtido por meio de concurso público severo, e seu desempenho seria regulado por normas rígidas de administração pública.
Tais cuidados foram sendo substituídos pela enlouquecida busca da "eficiência" no trato da coisa pública, o que significou, na prática, abrir as portas para que o particularismo e o interesse privado fossem tomando conta dos negócios do Estado. Não é, portanto, surpreendente que os escândalos se multipliquem. Os liberais querem resolver isso fazendo com que o Estado deixe de intrometer-se nos assuntos econômicos. Mas, hoje em dia, em toda a parte, são os mercados que se intrometem na política. A concorrência entre as grandes empresas não só impõe a presença do Estado nos negócios mas envolve a disputa por sua capacidade reguladora e a luta pela captura de recursos fiscais.
Daí o enriquecimento repentino e sem causa, a afluência abusada e agressiva. O Estado plutocrático não tem outra regra senão a violação sistemática dos princípios que deveriam reger a administração pública no Estado de Direito. O arbítrio, o favorecimento, o segredo e a obscuridade são constitutivos de seu modo de funcionamento.
Junta-se a isso não só a concentração crescente dos processos de formação da opinião pública nas grandes empresas de comunicação como também a especialização da mídia na difamação e na desmoralização dos dissidentes. É a liberdade de produzir notícias devorando a liberdade de informação e de opinião. Não se trata mais, por desnecessária, da censura do Estado, sobejamente óbvia para não ser repugnante.
É a degeneração da liberdade negativa. A liberdade de uns descamba para a interdição das idéias, das palavras e das personalidades dos concorrentes. A mentira e a falsificação tornam-se endêmicas. Nesse clima abafado, prosperam as razões e os impulsos dos ressentidos, primeiro de forma dispersa, depois transmitido com a velocidade da peste. No devido tempo, a dispersão se transfigura numa unanimidade, encabeçada por uma liderança autoritária e supostamente "esclarecida".
O império da lei, assim como seus embaraços e delongas processuais, será então substituído pela opinião fulminante, pela partidarização dos poderes republicanos -isso quando não naufragar diante da conduta fora-da-lei dos agentes do poder público em contubérnio com os promotores de escândalos. O julgamento fundado na argumentação racional das partes e na livre formação da convicção do juiz cederá lugar, finalmente, ao justiçamento praticado pelos esbirros do abuso. Fernando Henrique sabe o que diz: quem vigia as eleições é a mídia.
O gosto por formas de controle social autoritárias -"resolvistas"- é mais disseminado do que costuma imaginar a nossa vã filosofia. Gente de bem, alinhada e até bem-falante, alimenta desejos secretos e nem por isso menos ardentes de ver o país governado de forma despótica, não obstante "esclarecida". Nada de Estado de Direito, interdependência dos Poderes, garantias individuais, Judiciário independente e outras tapeações da democracia. Os que antes reivindicavam e sustentavam regimes autoritários ou a presença de tiranetes no governo das nações podem ficar tranquilos: as "democracias de mercado" vêm conseguindo enfrentar com maior eficiência os riscos de uma ruptura do status quo promovida por oposicionistas ou competidores recalcitrantes. O truque é convencer a malta de que os que realmente mandam são os donos da grana e da informação e seus funcionários no Estado -estão acima dos demais, dotados de entendimento, sabedoria e princípios morais superiores aos dos simples mortais.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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