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RUBENS RICUPERO
Do épico à chanchada
Dizia Machado de Assis: "Os senadores iam regularmente ao trabalho. Era raro não ter sessão por falta de quórum"
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DOIS DISCURSOS de defesa separados por 142 anos balizam o naufrágio do Senado.
O primeiro, de Paranhos, foi épico
na duração e substância. O segundo,
do atual presidente da Casa, não
passou de farsa com sotaque brasileiro de chanchada.
Em "O Velho Senado", Machado
de Assis fez o retrato quase cinematográfico da sessão de 5 de junho de
1865. Plenipotenciário no Prata, Paranhos assinara a convenção para
pôr fim à interminável Guerra
Grande uruguaia, ganhando a República Oriental como aliada no conflito recém-começado com o Paraguai.
O "Diário do Rio", para o qual Machado cobria o Senado, atacara o
acordo como demasiado concessivo,
provocando a demissão do futuro
Visconde do Rio Branco. Este, de
volta à Corte, foi defender-se no Senado.
"Não a vaidade, senhor presidente...", as primeiras palavras, lembra o
autor de "Dom Casmurro", foram
antes bradadas que ditas. O senador
por Mato Grosso começou a falar à
uma hora da tarde. "Paranhos costumava falar com moderação e pausa;
firmava os dedos, erguia-os para o
gesto lento e sóbrio, ou então para
chamar os punhos da camisa, e a voz
ia saindo meditada e colorida."
Conclui Machado: "Eram nove
horas da noite quando ele acabou;
estava como no princípio, nenhum
sinal de fadiga nele nem no auditório, que o aplaudiu. Foi uma das
mais fundas impressões que me deixou a eloqüência parlamentar".
Comparar ao momento épico do
Senado o orador, o assunto sórdido
e, sobretudo, o cúmplice auditório
da farsa em curso seria covardia. Tudo no contraste com aquele longínquo passado causa vergonha. Lembrava Machado de Assis: "Os senadores compareciam regularmente
ao trabalho. Era raro não haver sessão por falta de quórum. Uma particularidade do tempo é que muitos
vinham em carruagem própria"
(não em carro oficial). "Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era
grande e constante."
Mais que a assiduidade e outros
aspectos formais, o que seduz na
evocação machadiana é a dignidade,
a força, a gravitas romana dos chefes
políticos, Eusébio, Zacarias, Olinda,
Nabuco de Araújo, Paranhos.
Dir-se-á que nada disso tinha muito a ver com o país real, que era escravagista. O que se perdeu em cultura e decoro ter-se-ia ganho na representatividade do Congresso, que,
reza a opinião convencional, teria a
"cara" do povo real.
Seria verdade se os novos compensassem a rusticidade e incultura
com a operosidade e o senso prático
de empresários. Ou se fossem eficazes advogados dos pobres. Ora, o que
temos é Congresso mais relevante
para produzir escândalos que para
legislar ou investigar.
A própria representação é relativa. Os escolhidos pelo Imperador
provinham, ao menos, de lista de votados. Os suplentes atuais devem o
lugar ao arbítrio ou ao dinheiro para
a campanha, como admitiu grotesco
exemplar da categoria.
O Brasil do presente é melhor que
o de Machado de Assis em muito,
mas não em tudo, a começar pela ausência do "Bruxo do Cosme Velho".
Negar isso não é ciência, mas a usual
complacência brasileira com os próprios defeitos.
Ao ler Machado, temos pena de
não mais podermos sentir, como ele,
respeito pelos políticos. Consola-nos, porém, pensar como Domício
da Gama: "Machado de Assis, Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco fazem falta ao meu coração de brasileiro confiado no futuro de uma nação que teve dessas inteligências".
RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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