São Paulo, Sábado, 24 de Julho de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Quem ganha com a privatização da Cesp?

JOAQUIM FRANCISCO DE CARVALHO

As declarações do secretário de Energia de que o leilão da Cesp-Paranapanema "será realizado no dia 28, mesmo sem a cassação da última liminar, que impede a subdivisão da Cesp em três empresas", dão a medida do desapreço das autoridades pela racionalidade, pela Justiça e pelas leis.
Na campanha de 1994, nenhum dos candidatos à Presidência ou a governos estaduais manifestou-se claramente pela privatização de sistemas já existentes, implantados com dinheiro público, por estatais como Vale do Rio Doce, Petrobras, Light, Eletropaulo, Cesp, Cemig etc. No entanto, já eleitos, mudaram o discurso e, sob pressões alheias ao interesse público, passaram a defender a privatização das estatais mais estratégicas e lucrativas, em favor de grupos influentes, muitos dos quais contribuíram para suas campanhas.
Assim, o governo federal apressou-se em entregar, entre outras, a Light e a Vale. Ao mesmo tempo, valendo-se de prerrogativas do Banco Central, forçou os Estados a se desfazer de suas empresas mais lucrativas. Só no sistema elétrico já foram entregues à exploração estrangeira as mais estratégicas distribuidoras do país: Eletropaulo e Elektro (SP), Light e Cerj (RJ), partes da Cemig (MG) e da CEEE (RS). A meta agora é entregar a geração. O primeiro passo foi dado em setembro de 98, quando o grupo belga Tractebel arrematou a Gerasul (PR, SC e MS) em "leilão sem concorrentes", por valor subestimado.
Os fatos mostram que o Brasil tem perdido muito com as privatizações. Nos últimos cinco anos, a dívida interna saltou de R$ 60 bilhões para R$ 480 bilhões; o endividamento externo passou de US$ 120 bilhões a US$ 250 bilhões; as remessas de lucros, que eram de US$ 700 milhões, passaram a sangrar o país em US$ 7 bilhões por ano; saúde pública, ensino básico e pesquisa científica carecem de recursos; os índices de desemprego são desumanos, o valor aquisitivo dos salários amesquinha-se, a concentração de renda é das mais injustas do planeta, a violência é assustadora e assim por diante.
Em São Paulo, a privatização das distribuidoras de eletricidade (CPFL, Eletropaulo e Elektro) não impediu que a dívida pública crescesse de R$ 25 bilhões, em fins de 94, para mais de R$ 50 bilhões, no fim do ano passado. Ainda assim, o governo insiste em privatizar a geração (Cesp e Emae).
Com um patrimônio superior a US$ 21 bilhões e uma capacidade instalada de 12,68 mil megawatts, a Cesp é uma das maiores geradoras do Hemisfério Sul. Em 98, seu faturamento bruto foi da ordem de R$ 4,23 bilhões, com um lucro líquido de R$ 688 milhões. Em futuro próximo, o potencial lucrativo da Cesp deverá superar 50% do faturamento, pois seu parque gerador é todo hidrelétrico e já está contabilmente depreciado, o que permite baixíssimos custos de geração. Observe o leitor que, com a privatização, os novos proprietários -que decerto estarão associados a grupos estrangeiros- sangrarão ainda mais as finanças estaduais, por força de remessas de lucros que, até o presente, têm sido reinvestidos em São Paulo. Lucros que, de resto, subirão astronomicamente, já que o governo não controla as tarifas.
Quanto à parcela a ser privatizada no dia 28 (Cesp-Paranapanema), ela dispõe de uma potência instalada de 2.306 megawatts, cujo valor de reposição estaria em torno de US$ 5 bilhões. Mas, inexplicavelmente, o governo deseja leiloá-la partindo do preço mínimo de R$ 650 milhões. Portanto, mesmo que se simule um ágio de 100%, o patrimônio público estará sendo entregue por uma ridícula fração de seu real valor.
A racionalidade manda centralizar, sob controle público, a exploração de sistemas hidrelétricos, pois são múltiplos os usos das bacias hidrográficas. Um governo responsável não pode permitir que a operação de usinas elétricas, visando lucros a curto prazo, comprometa o abastecimento de água para as cidades e para a irrigação ou o uso dos rios para a navegação interior. Aliás, por motivos semelhantes, os sistemas hidrelétricos são estatais em qualquer país soberano. Até nos EUA, onde quase tudo é privado, as hidrelétricas são estatais, sob controle municipal, estadual e até de entidades federais, como a Tennessee Valley Authority e a Bonneville Power Administration.
Por outro lado, a gestão coordenada de usinas geradoras e sistemas de transmissão permite a transferência de grandes blocos de energia entre bacias de diversos regimes hidrológicos, incrementando-se assim, no caso de São Paulo, em cerca de 20% a energia garantida, sem construir novas usinas. É claro que, se a Cesp for desmembrada e privatizada, perderemos essa vantagem.
Os atuais mandatários foram eleitos para administrar o patrimônio público em benefício da sociedade, não para vendê-lo enquanto a população chafurda no desemprego e na miséria. Para qualquer cidadão de bom senso, privatizar a Cesp será um ato tão irracional e inexplicável que exigirá a instalação de uma CPI na Assembléia Legislativa para investigar o opaco programa de privatizações do governo de São Paulo.


Joaquim Francisco de Carvalho, 63, engenheiro do setor elétrico, é consultor para assuntos de energia. Coordenou o setor industrial do Ministério do Planejamento (governos Castello Branco, Costa e Silva e Médici).
O colunista Aloysio Biondi está em férias


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