São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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ARTIGO

Os altos executivos e o abuso da coerção

PAUL KRUGMAN

Os elevados salários dos altos executivos das empresas norte-americanas refletem a intensa competição entre as companhias pelos maiores talentos. Opções de ações e outras formas típicas de remuneração de diretores têm por objetivo oferecer incentivo ao bom desempenho dos profissionais. Esses incentivos e comissões alinham o interesse pessoal dos administradores aos interesses dos acionistas.
Nada do que está escrito no parágrafo precedente é verdade. Essa é a mensagem de um trabalho extraordinário veiculado pelo Serviço Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês), uma organização independente de estudo econômico. O estudo é leitura obrigatória para quem quer que esteja tentando compreender o que realmente acontece com a economia dos EUA.
Li esse estudo, "Remuneração Executiva nos EUA: Contrato Ótimo ou Extração de Rendas?", de autoria de Lucian Bebchuk, Jesse Fried e David Walker (das universidades Harvard, Berkeley e Boston, respectivamente), pela primeira vez em dezembro passado. Foi em grande parte devido à análise que ele oferece que concluí, bem cedo no jogo, que a Enron seria apenas o primeiro de muitos escândalos.

Teoria no avesso
O que eles demonstram no estudo é que a teoria oficial da corporação, sob a qual o executivo chefe trabalha a convite de um conselho que representa os interesses dos acionistas, está seriamente distorcida. Na prática, os presidentes e diretores-executivos ("CEOs") modernos determinam sua remuneração, limitados apenas pelo "limite de indignação" -indignação não de parte do conselho, cujos membros dependem da boa vontade do diretor-executivo para muitos dos privilégios de que desfrutam, mas de parte de grupos externos capazes de causar problemas. E o verdadeiro propósito de muitas das características dos pacotes de remuneração de executivos não é oferecer incentivos, mas sim "camuflagem", ou seja, permitir que os diretores se recompensassem regiamente, mas minimizando a indignação que isso poderia suscitar.
O caso mais óbvio que se pode apontar é o das opções de ações (ações oferecidas como comissões). Existe um bom argumento para defender o vínculo entre a remuneração de um executivo e o desempenho dos preços das ações de sua empresa, mas um verdadeiro esquema de incentivo teria aspectos que raramente vemos em prática.

Tiro pela culatra
Por exemplo, o pagamento do executivo dependeria do desempenho das ações de sua empresa comparadas a um índice padronizado composto de empresas semelhantes, de modo que o que ele venha a receber reflita seu desempenho pessoal, e não as condições gerais do mercado.
Na prática, porém, um diretor-executivo quase sempre recebe opções de ações ao preço de mercado e ponto final. Se o preço das ações sobe, ele aproveita os lucros. Se desce, recebe novas opções, a preço mais baixo. A bem da justiça, existem idiossincrasias nas leis tributárias que encorajam essa prática. Mas o principal motivo para que os executivos sejam pagos dessa forma é que o método lhes oferece uma recompensa quase certa, a menos que as ações caiam regularmente. Mais cedo ou mais tarde, um executivo que continue a receber opções ao preço corrente ganha muito dinheiro, mas o faz de uma maneira que camufla as vantagens inerentes do sistema. A concessão de opções sequer é contabilizada como despesa empresarial, e a recompensa, quando vem, pode sempre ser representada como prêmio pelas realizações.

Camuflagem
Graças às crescentes capacidades de camuflagem das empresas e também à erosão contínua das velhas inibições quanto aos excessos aparentes, o salário médio dos executivos em grandes empresas disparou para a estratosfera. Ele era "apenas" 40 vezes superior ao do trabalhador médio uma geração atrás; hoje, representa 500 salários médios. Isso é muito dinheiro, mas as despesas diretas não são o problema principal.
Em lugar disso, estamos falando do fato de que os truques usados para camuflar pagamentos exorbitantes deram aos executivos enorme incentivo para elevar os preços das ações em um momento que lhes permitisse exercer suas opções com o máximo de vantagem.
Estamos apenas começando a ver até que ponto esse sistema de incentivo distorce o comportamento corporativo. Sabemos agora que algumas empresas estavam envolvidas em grandiosos programas de aquisição e expansão que terminaram mal, mas apenas depois que seus principais executivos lucrassem imensamente.

Mocinhos e bandidos
Sabemos também que as empresas ávidas por atingir ou ultrapassar as expectativas dos analistas se envolveram em práticas de contabilidade criativa em escala grandiosa. Nos últimos anos da "bolha", a maioria das grandes empresas norte-americanas registrou crescimento de lucros na casa dos dois dígitos, mas as estatísticas nacionais demonstram agora que os lucros praticamente não cresceram.
Não estou alegando que os executivos-chefes fossem vilões deliberados, cofiando bigodes e soltando risinhos malignos diante de suas canalhices. As pessoas racionalizam muito bem as suas ações e a grande maioria dos executivos certamente se manteve dentro dos limites formais da lei.
Mas o fato é que temos um sistema corporativo que oferece imenso incentivo para o mau comportamento. Eu me surpreenderia que a admissão de culpa feita por Michael Kooper, da Enron, seja o começo do fim. Na melhor das hipóteses, é o fim do começo.


Paul Krugman, economista e professor na Universidade Princeton (EUA), é colunista do jornal "The New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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