São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2008

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ARTIGO

Plano Paulson não é solução

Proposta prevê aquisição de maus ativos por valor muito superior ao justo

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

MOMENTOS de desespero requerem medidas desesperadas. Mas lembrem-se, igualmente, de que decisões apressadas podem terminar ditando a forma do sistema financeiro por uma geração. A rapidez é essencial.
Mas acertar quanto ao novo regime a ser adotado, também.
Sem dúvida a crise há muito passou do estágio no qual os governos poderiam deixar ao setor privado a responsabilidade por se salvar, com apenas uma pequena ajuda dos bancos centrais. Para os EUA, o resgate ao Bear Stearns foi o momento em que essa opção desapareceu.
Mas os acontecimentos das últimas semanas -o resgate a Fannie Mae e Freddie Mac, a quebra do Lehman Brothers, a venda do Merrill Lynch, o resgate à AIG, a fuga para a segurança e a decisão pelo Morgan Stanley e pelo Goldman Sachs de que se tornarão holdings bancárias sujeitas ao regime regulatório- tornam inevitável uma solução abrangente.
O público dos EUA quer ação.
A questão é determinar se receberá a ação correta. Para responder a isso, devemos concordar quanto aos desafios que o sistema financeiro dos EUA enfrenta e aos critérios para julgar a forma de enfrentá-los.
Quais são os desafios? A resposta dada por Hank Paulson, o secretário do Tesouro americano e um dos proponentes mais insistentes de ação imediata, ao anunciar, na sexta-feira, seu "programa de alívio de ativos problemáticos", é que "a fraqueza inerente do nosso sistema financeiro hoje são os ativos hipotecários sem liquidez que perderam valor à medida que avança a correção no mercado da habitação. Esses ativos estão bloqueando o fluxo de crédito tão vitais para a nossa economia". O desafio principal, portanto, seria a falta de liquidez, não a insolvência. Ao criar um mercado para esses ativos tóxicos, Paulson espera deter a espiral de quedas de preços e de quebra de empresas.
Sugiro a adoção de uma visão mais ampla. O total agregado de dívidas dos EUA subiu de apenas 163% do PIB, em 1980, para 346%, em 2007. Só dois setores foram responsáveis por essa imensa alta no endividamento: os domicílios, cujas dívidas avançaram de 50% do PIB em 1980 para 71% em 2000 e 100% em 2007; e o setor financeiro, cujo endividamento subiu de 21% do PIB em 1980 a 83% em 2000 e 116% em 2007. Os balanços do setor financeiro explodiram, da mesma forma que sua lucratividade hipotética. Mas alavancagem, infelizmente, funciona nos dois sentidos.
Já que a dívida externa líquida dos EUA era de 39% do PIB pelo final de 2007, virtualmente toda essa dívida representa ativos para outras entidades domésticas, e uma coisa deveria compensar a outra. Mas, quando o estoque de dívida bruta é imenso e as condições econômicas são complicadas, a chance de que muitas entidades quebrem se torna alta.
Quando as pessoas temem insolvência em massa, as instituições de empréstimo suspendem seus empréstimos, e os devedores deixam de gastar. O resultado pode ser uma "deflação de dívidas", descrita por um economista americano, Irving Fisher, em 1933, e vivida pelo Japão nos anos 1990.
Dada a recente explosão no nível de alavancagem, é improvável que o desafio seja só o de determinar de maneira incorreta o preço dos títulos tóxicos lastreados por hipotecas. Muitas pessoas e instituições fizeram apostas alavancadas que saíram pela culatra. As dívidas dessas pessoas não podem ser pagas. Os credores estão reagindo como esperado.
Agora consideremos os critérios que devem ser usados para avaliar a intervenção. Primeiro, ela deve responder à ameaça sistêmica. Segundo, deve minimizar os danos aos incentivos.
Terceiro, precisa apresentar custo e risco mínimo para os contribuintes. E, acima de tudo, precisa ser coerente com a idéia de justiça social.
O problema fundamental com o esquema de Paulson, na forma proposta, é, portanto, o de que não constitui nem a solução necessária e nem uma solução eficiente. Não é necessária porque o Federal Reserve tem capacidade para enfrentar o problema da falta de liquidez por meio de suas muitas opções como emprestador de último recurso. E não é eficiente porque só seria capaz de lidar com a insolvência ao adquirir maus ativos por valor muito superior ao justo, o que garantiria grandes prejuízos para os contribuintes e ofereceria um resgate sem limites claros aos mais irresponsáveis dos investidores.
Além disso, esses ativos sofriam de fala de liquidez exatamente porque estimar seu valor era tão difícil. O governo correria o risco de ver seus cofres recheados de imensas quantias de papéis podres superavaliados, mesmo que tente evitar essa situação. Igualmente reprovável, ainda que mais em termos de forma que de fundamento, era a idéia de poderes ilimitados ao Tesouro.
Um fundo como esse deveria ser operado de maneira profissional e fiscalizado por instituições independentes. Por fim, se o governo dos EUA pretende resgatar os investidores incompetentes, deveria também oferecer assistência aos devedores, pobres e mal informados.
No entanto, acima de tudo, um esquema para enfrentar a crise deveria ser capaz de remediar a descapitalização iminente do sistema financeiro, da maneira mais dirigida possível.
A maneira mais simples de recapitalizar essas instituições seria forçá-las a levantar capital e a suspender seus dividendos.
Caso isso não funcione, poderia haver conversões forçadas de dívida em capital. A atração das conversões de dívidas em capital é que isso criaria prejuízos para os credores, e isso é essencial para a saúde em longo prazo de qualquer sistema financeiro.
A vantagem desses esquemas é que eles não requereriam um centavo em dinheiro público. A desvantagem é que causariam perturbações e seriam altamente impopulares. As instituições bancárias teriam de ter seu valor determinado, e as instituições consideradas como descapitalizadas teriam de adotar um dos métodos sugeridos para melhorar suas posições de capital.
Se, como parece plausível, um esquema que imponha esse tipo de sofrimento ao sistema financeiro, tenha de ser rejeitado de imediato, a segunda melhor escolha seria uma injeção de ações preferenciais pelo governo nas instituições descapitalizadas, como propôs Charles Calomiris, da Universidade Columbia. Isso representaria um resgate, mas determinado pelo comportamento dos beneficiários, em especial quanto pagamento de dividendos. A idéia seria bem melhor do que oferecer benefícios a quem não os merece por meio de aquisições em massa de papéis tóxicos a preços absurdos.
Qual é minha conclusão, portanto? Sim, pode existir espaço para uma intervenção no mercado de títulos tóxicos. Mas essa é uma maneira dispendiosa e ineficiente de enfrentar os mais profundos desafios atuais.
O que precisamos, acima de tudo, é de uma maneira clara e efetiva de promover a redução das dívidas e a recapitalização do sistema financeiro, idealmente sem recurso ao dinheiro dos contribuintes. Caso seja preciso usar o dinheiro deles, as injeções devem ser dirigidas de maneira cuidadosa e controlada. Ação abrangente é essencial, como Paulson decidiu.
Mas os Estados Unidos deveriam dedicar o tempo necessário a adotar a ação abrangente certa.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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