São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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CRISE NO AR

Salários atrasados, reclamações de passageiros e remuneração achatada compõem rotina das funcionárias

Comissárias da Vasp enfrentam turbulência

MAELI PRADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Cabelos curtos, aparelho nos dentes, Clarice Lacerda dos Santos, 26, tem um salário de R$ 676. Até pouco tempo, trabalhava em média 124 horas por mês, com atrasos salariais recorrentes, sem ter seu FGTS depositado e ouvindo reclamações de toda sorte. Optou por um programa de demissão voluntária.
Longe da imagem glamourizada que é comum associar à profissão, ela faz parte do quadro de comissários de bordo da Vasp, formado por uma maioria de mulheres muito jovens, que ganha pouco, trabalha muito, muitas vezes longe da família e que acaba sendo a cara da empresa perante os passageiros -em geral indignados com cancelamentos e atrasos.
Os baixos salários são comuns a todas companhias -a categoria não tem um piso estabelecido por lei ou acordo sindical-, mas no caso da Vasp a tripulação está se acostumando a ouvir, nos últimos tempos, frases que massacram qualquer resquício de orgulho corporativo, como "Nunca mais viajo pela Vasp", "Será que esse vôo chega mesmo lá?" e "Será que vai ter combustível para pousar em São Paulo?".
Cabe às comissárias acalmá-los, muitas vezes com um argumento feminino que consegue desfazer qualquer pânico repentino: "Senhor, meu filho está me esperando. Eu não viajaria se não tivesse certeza que nada vai acontecer".
A média de idade da categoria na Vasp varia de 22 a 27 anos. A empresa alega que é para dar oportunidade aos jovens, mas, segundo sindicalistas, a aérea demitiu há alguns anos quase todos os comissários mais antigos como estratégia para achatar salários.

Batom caro
Atualmente, um comissário que entra na Vasp ganha um salário base de R$ 500, segundo o Sindicato Nacional dos Aeronautas.
O grande problema é conseguir se manter em uma profissão em que os gastos são elevados. Por exemplo, os comissários não podem se atrasar um minuto para um vôo. Em casos de emergência, precisam tomar táxi para chegar, e, quando o destino é o distante aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, o quadro se complica.
No caso das mulheres, há um custo insuspeito mas significativo: a maquiagem pesada, feita e retocada todos os dias, tem que ser de qualidade, e um bom batom é caro e acaba rápido.
As obrigatórias meias-calças desfiam muito facilmente. A Vasp, por exemplo, fornece apenas dez delas a cada dois anos.
Ajudam a pagar as contas as horas extras -que são depositadas caso a tripulação voe mais de 54 horas por mês. Se trabalham a mais depois das 18h, é valor dobrado, e, se é em um domingo ou feriado, o dobro mais 20%.
O real segredo da sobrevivência, no entanto, se chama diária de alimentação. Para almoço ou jantar, o valor é R$ 30. Para o café da manhã, R$ 7,50. No final do mês, o valor total das diárias é maior do que o salário. "Muitos comissários se alimentam mal para guardar as diárias, que acabam compondo os salários", diz Marlene Ruzza, diretora do Sindicato Nacional dos Aeronautas e ela mesma ex-comissária da Vasp -parou de voar em 2000.
A necessidade das diárias se mostra em toda a sua extensão quando chegam as férias. "É desesperador. Podemos viajar, temos direito a passagens, mas não adianta nada, porque não temos dinheiro para gastar no destino", conta Clarice, que, quando entrou na companhia, era chamada pelo "nome de guerra" Helena Prado -estratégia das companhias para não causar confusão entre funcionários homônimos.
Recentemente, um dos principais fatores de descontentamento entre a tripulação é o fato de que, segundo funcionários, a empresa desvia algumas vezes a verba das diárias para pagar o combustível -com a crise financeira agravada, as distribuidoras exigem pagamento à vista.
Outro problema, de comissários de todas as companhias, é que a escala é organizada por turnos, e em uma semana eles nunca trabalham todos os dias em um mesmo período.
"É um trabalho penoso", resume Marlene. "Existem estudos que mostram que isso mexe com os ciclos de sono da tripulação", completa. Um dos principais motivos de afastamento de comissários é a fadiga crônica, diz ela.
A diretora do sindicato conta que os investimentos da Vasp em funcionários diminuíram muito. Ela começou a trabalhar na companhia em 1976. "Toda aeronave tinha um chefe de equipe, que recebia um adicional por essa responsabilidade. Atualmente, na prática, continua havendo um chefe, mas não recebe nada a mais por isso", afirma.
Foi um atraso no pagamento dos salários referentes a agosto e irregularidades nos depósitos do FGTS, entre outros problemas, que levou pilotos e comissários à primeira paralisação da Vasp neste ano. Os funcionários da Varig enfrentam dificuldades parecidas.
"Aconselho sempre quem está começando a estudar, não se concentrar apenas na aparência. Fiz duas faculdades voando", diz a diretora do sindicato.

Tapas e grosserias
Lidar com passageiros mais difíceis -é rotineiro receber cantadas grosseiras- é inerente à profissão. Os aeronautas têm até o Dia Mundial contra Passageiros Indesejáveis como forma de protesto. Há alguns anos, o cantor e vereador eleito em São Paulo pelo PP Agnaldo Timóteo, por exemplo, estapeou uma comissária da Vasp e foi obrigado pela Justiça a pagar R$ 54 mil para indenizá-la.
Mas não é regra: mesmo com a crise, muitos passageiros da Vasp são gentis e dizem às comissárias que voam pela empresa, ainda, pela simpatia delas. "Conquistamos o passageiro porque o ambiente é muito bom no vôo", afirma Clarice.
Os obstáculos se acumulam, mas são raras as que falam em desistir. "Sou apaixonada pelo que faço", afirma ela, que quer continuar a ser uma comissária. Em outra companhia, é claro.


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