São Paulo, quinta, 24 de dezembro de 1998

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Presentes de Natal e dona Hebe

ALOYSIO BIONDI

A sociedade brasileira acabou ganhando o seu grande presente de Natal. É assim que deve ser vista a aliança entre empresariado e movimentos sindicais respeitáveis, clamando por mudanças para reativar a economia e combater o desemprego. Não se trata de um movimento apenas para reduzir as taxas de juros, como as manchetes, enganosamente, estão levando a acreditar. Não é isso. Após quatro anos de silenciosa aceitação da destruição da economia nacional, lideranças empresariais, sindicais e políticas estão agora exigindo que o governo Fernando Henrique Cardoso tenha aquilo que nunca teve, isto é, uma política econômica. É pena que as manchetes sejam equivocadas. Elas estão encobrindo, exatamente, a transformação mais importante que levou ao pacto.
Ao longo dos últimos quatro anos, o debate sobre os rumos da economia se concentrou exclusivamente em dois aspectos, a taxa de juros e o valor do real, atribuindo-se a eles todos os problemas do país. A taxa de juros virou um fetiche nacional, responsabilizada pela queda no consumo, nas vendas e na produção. Nunca foi verdade -tanto que, repita-se mais uma vez, as taxas de juros cobradas no financiamento de vendas de carros sempre foram baixíssimas, na faixa de 3,5% a 4% ao ano, e, em alguns momentos, na faixa de mero 1%, e a produção do setor também está encalhada.
A queda no consumo nacional, a recessão têm outra origem, a saber, a perda do poder aquisitivo da população, provocada por fatores como o desemprego (resultante por sua vez de importações desenfreadas), o achatamento dos vencimentos do funcionalismo, os reajustes ridículos do salário mínimo, a queda brutal na renda dos agricultores e a perda de mercados, de faturamento, pelas empresas atingidas pelas importações. A obsessão com as taxas de juros impedia que se enxergasse o cenário real -afirmação que pode ser facilmente comprovada quando se lembra que, ainda em setembro, acreditava-se que a redução de impostos provocaria aumento nas vendas de carros, ao barateá-los. Ignorava-se a perda do poder aquisitivo da população como real origem dos problemas.
Agora, isso mudou. Um excelente presente de Natal para a sociedade. Traz a esperança de correção de rumos no segundo mandato presidencial. O caminho não é apenas reduzir juros, mas adotar medidas que aumentem a renda e o poder de consumo.
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Na França Até outubro, a França reduziu em 10% o déficit do governo, contrariando as previsões pessimistas de críticos neoliberais e conservadores. A França não aumentou impostos nem reduziu despesas para combater o rombo. Ao contrário. Seu governo deu prioridade à criação de empregos, reduziu impostos e subsidiou, mesmo, a contratação -sobretudo de jovens. A economia reagiu, a arrecadação cresceu, o rombo caiu.
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A agricultura Nos EUA, a seca destruiu colheitas em alguns Estados. O governo indenizou os produtores (mesmo sem existir seguro, no caso), desembolsando US$ 5 bilhões. No paupérrimo Peru, o governo Fujimori fez o mesmo, no ano passado, após violentas inundações em regiões agrícolas.
Aqui no Brasil, até hoje o seguro agrícola não foi criado. O fenômeno La Niña, confirmando as advertências, está destruindo colheitas de feijão, milho e soja, atingidas pela seca, no Sul do país. Reembolsar os produtores é garantir renda, poder de consumo. Incompatível com o "ajuste fiscal" exigido pelo FMI? Com criatividade, tudo se resolve. Se esses (pequenos, sobretudo) produtores receberem empréstimos de emergência para serem quitados somente daqui a três anos, esse dinheiro não precisará ser "contabilizado" nas contas do governo. Quem emprestaria? Bancos oficiais, Caixas Econômicas estaduais. Os governadores precisam ser mobilizados para um plano de emergência pró- agricultura.
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Solidariedade Campanha para doação de livros usados organizada por uma emissora de TV arrecadou milhões de exemplares. Ficou patente, mais uma vez, um fenômeno: o Brasil é um país onde os governantes só pensam em projetos caríssimos, que envolvem despesas do Tesouro -porque desprezam, ridicularizam mesmo a participação coletiva. Um vício que se repete em segmentos da sociedade, à direita e à esquerda. A "direita" considera que "não se deve ajudar muito os pobres, porque eles acabam fazendo corpo mole". A esquerda é contra o "paternalismo", que, no seu entender, seria "contra-revolucionário". Hora de relembrar: na crise do começo dos anos 80, a apresentadora de TV Hebe Camargo angariou donativos e os enviou, em um caminhão, a uma cidadezinha do ABC paulista onde havia centenas de chefes de família desempregados. A distribuição dos donativos foi impedida por Igreja e sindicatos, para os quais "o trabalhador precisa de emprego, não de doações".
Hoje essas atitudes certamente são coisas do passado. Com a recessão, o desemprego brutal, a miséria previstos para 1999, há lugar para a mobilização coletiva que minore problemas da população pobre e desempregada. O trabalho voluntário, a articulação de Organizações Não- Governamentais surge como prioridade para quem é solidário.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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