São Paulo, quinta, 24 de dezembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Complexo de vira-lata

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Um dos fatos mais significativos da semana foi, como se sabe, o início de uma reação da indústria nacional à recessão e à política de juros altos. O ato público realizado na última segunda- feira na Fiesp deu uma dimensão do grau de insatisfação e até de revolta que prevalece atualmente no setor produtivo brasileiro.
O tema já foi objeto de muito comentário, mas queria tomá-lo como gancho para tratar de uma questão de natureza mais estrutural. Em seu discurso no evento de segunda-feira, o presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva, manifestou a convicção de que a mudança do país depende de "mais auto-estima". A observação, feita de passagem e em tom despretensioso, toca num ponto fundamental, numa verdadeira ferida aberta.
Muito do que aconteceu na área da política econômica, em termos de agressão ao interesse nacional e desnacionalização, desde os tempos de Collor, só foi possível porque o brasileiro vem atravessando uma gigantesca crise de auto-estima. A experiência traumática de uma longa instabilidade econômica e muitos anos de intensa propaganda antinacional produziram efeito poderoso e desagregador.
É verdade que um pouco de autocrítica não faz mal a ninguém. Mas o brasileiro está realmente indo longe demais. Fomos levados a assumir uma visão limitada e negativa do nosso país e das suas possibilidades. Convenceram-nos de que o Brasil está condenado a ter um papel secundário e periférico no mundo, de que o nosso destino é sermos caudatários dos modelos, opiniões e valores produzidos pelos países mais adiantados.
Vocês vão dizer que a falta de auto-estima do brasileiro não é nenhuma novidade. De fato, nos anos 50, Nelson Rodrigues já falava do nosso "complexo de vira- lata". "O brasileiro", dizia ele, "é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem".
Mas, nos anos recentes, esse complexo de vira-lata, essa rejeição sistemática de tudo que é nacional ganhou proporções inusitadas, mesmo para padrões brasileiros. Passamos a ser governados por "importadores de consciência enlatada", para usar expressão do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade. E esquecemos que os países em desenvolvimento têm que estar sempre em guarda contra "a verdade dos povos missionários, mentira muitas vezes repetida".
Foi-se o tempo em que os intelectuais brasileiros se dedicavam à elaboração de mitos construtivos como o da antropofagia. O que tivemos nos anos 90 foi a prostração, supersticiosa e ignorante, diante de ícones estrangeiros como o "Consenso de Washington", a "globalização" e outras fabricações do gênero.
O melhor comentário recente sobre essas questões é do economista Carlos Lessa, em entrevista publicada no livro "Visões da Crise", recém-lançado pela editora Contratempo e organizado por Adhemar Mineiro, Luiz Antônio Elias e César Benjamin. Lessa observa, com razão, que a construção de qualquer projeto de futuro para o Brasil tem como pré-requisitos fundamentais a identidade nacional e a auto-estima. Sem isso, diz ele, um povo deixa de ser sujeito da própria história e acaba passando à condição de material etnográfico.
É uma ilusão imaginar que as dificuldades brasileiras serão superadas pela macroeconomia, com discussões sobre juros, câmbio, déficits e tributação. Como observa Lessa, sem enfrentar a nossa colossal crise de auto-estima e de identidade não vamos chegar a lugar nenhum.
Continuaremos à mercê dos "importadores de consciência enlatada"encastelados no governo federal.


Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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