São Paulo, quarta-feira, 25 de março de 2009

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PAULO RABELLO DE CASTRO

O novo trilhão do Bernanke


O abuso na emissão da moeda sem lastro terá seu julgamento adiado pela deflação atual; mas o juízo final virá


O NOVO trilhão de Bernanke tem cheiro de inflação, gosto de inflação, mas não se converterá em inflação tão cedo. A previsão deste economista é válida só para 2009. E por quê? A razão é técnica. O anúncio da injeção de dólares sem lastro -a maior de todos os tempos, na esteira do outro trilhão emitido em 2008- chega a um mercado pouco disposto a fazer esse dinheiro circular e, assim, pressionar a demanda efetiva e, adiante, também o nível dos preços em geral. Ou seja, como a corda da vontade de gastar está frouxa e é grande a propensão do americano a economizar e pagar dívidas, o novo trilhão de Bernanke não terá efeito instantâneo sobre a inflação do dólar americano.
Os efeitos imediatos pretendidos pelo Fed são outros. Ao comprar títulos do Tesouro em circulação para sua carteira, o Fed tenta matar vários coelhos com uma paulada. Responde aos chineses, que haviam cobrado mais garantias para os títulos da dívida americana. "A garantia", diz o Fed, "são as compras que faço dos meus papéis." Tira parte de seus títulos de circulação, quando todos ainda querem comprá-los, tornando-os mais escassos. O preço do papel sobe, e o juro embutido na transação cai. No dia seguinte, vem o Tesouro americano e poderá rolar seu imenso déficit (quase US$ 2 trilhões em 2009) com juros mínimos. O objetivo de economizar juros para o governo americano é atingido.
Alguém observará que ocorre nos EUA o oposto do que se esperaria de alguém muito endividado. Em regime normal, quem mais deve mais paga em juros para rolar seu passivo. Mas os EUA, como emissor da moeda em que o mundo ainda confia (por enquanto), usa esse poder de suprimento de dólares. Os brasileiros são professores em emitir moeda sem lastro. Apesar de lidar com a moeda de reserva do mundo -ou talvez por isso mesmo-, Bernanke deveria dar uma passada pela recente história megainflacionária do Brasil.
Obviamente, a manobra do Fed é "calculada". Joga com a urgência de ter que responder ao murchante mercado de trabalho americano, que aponta para índice recorde, superior a 10% de desempregados, nos próximos meses. A opção extrema do Fed é fazer os juros tornarem-se de fato negativos, na medida em que consiga produzir alguma inflação, se possível em 2009. Nunca antes se viu isso: o Fed lutando para inflacionar a qualquer preço...
O problema está nas proporções do problema e no jogo das expectativas. Os mercados são cruéis, punindo os absurdos. O abuso na emissão da moeda sem lastro, em volumes trilionários, terá seu julgamento adiado pela deflação atual e pelo medo de morrer dos mercados. Mas o juízo final virá. Calculadamente, o Fed imagina que poderá soltar trilhões de notas agora (espécie de desfibrilador aplicado ao moribundo) e, assim que a economia emergir do coma, recolher o ervanário voador via a venda dos títulos do Tesouro que agora ele põe no seu caixa. Logo, haverá o dia, lá na frente, em que o Fed e o Tesouro tentarão vender títulos ao mesmo tempo, para financiar o megadéficit público de Obama, mais o enxugamento das notas de dólares sem lastro.
Os juros, nesse momento, terão a cara de Paul Volcker, ex-presidente do Fed que, naquela altura, poderá ter voltado para a cadeira que hoje é de Bernanke. Para os acadêmicos, uma observação curiosa: após ressuscitar Keynes, pelo lado fiscal, os americanos foram buscar outro grande economista associado à história da Grande Depressão, o professor Irving Fisher, que apelava a Roosevelt, no auge da crise, para emitir mais dólares. Agora, poderemos ver Bernanke testar a tese monetarista de Fisher.

PAULO RABELLO DE CASTRO, 59, doutor em economia pela Universidade de Chicago (Estados Unidos), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

paulo@rcconsultores.com.br


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