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LUÍS NASSIF
O comerciante é o culpado
Uma velhinha que mora
no oitavo andar de um prédio da rua Boa Vista, centro de
São Paulo, sempre se incomodou
com a presença de mendigos na
sua rua. Ela ainda não foi arrolada como suspeita de ter encomendado a chacina dos mendigos do centro de São Paulo.
O episódio virou questão nacional pela crueldade e pela intolerância. Devido à sua gravidade, as investigações só poderiam ter sido confiadas a policiais atilados, argutos, desses capazes de esmiuçar o ambiente
com olhos de lince e tirar conclusões com o cérebro de uma Agatha Christie.
Rapidamente os bravos investigadores puseram-se a campo e
definiram sua linha de investigação. A quem os mendigos prejudicavam? Esqueceram-se da
velhinha do oitavo andar, mas
lembraram-se dos comerciantes
do centro.
Como os comerciantes se incomodam com os mendigos, é possível que eles tenham encomendado sua morte a assassinos profissionais. Não é determinado
comerciante, com ficha criminal,
é "o comerciante", assim, genericamente, porque -fiquei sabendo agora- é da natureza dos
comerciantes contratar assassinos profissionais para se livrarem de mendigos incômodos.
Como duvido de que o caso tenha sido colocado nas mãos de
pessoas despreparadas, só me
resta acreditar que eles sabem
sobre comerciantes muito mais
do que ousaria supor minha vã
imaginação.
Imaginava que o comerciante
varejista -o suspeito- fosse o
sujeito que, atrás do balcão, cuidasse de vender seu produto no
varejo. Não tem veleidades de
enriquecimento rápido. Depende do trabalho diuturno e de andar na linha. Seus maiores ativos são endereço fixo (o ponto) e
clientela. Às vezes o aperto pode
até obrigá-lo a praticar sonegação, mas é o máximo que ousa, e
em última instância. Ele se pela
de medo de seu nome inscrito na
Serasa, de um título protestado,
de ser alvo de uma ação trabalhista.
Tendo em vista o custo representado por uma acusação de
assassinato, em geral as pessoas
utilizam essa prerrogativa para
atos mais rentáveis, como tráfico
de drogas, seqüestro, assaltos,
roubos de carga ou mesmo crimes passionais, não para mandar matar mendigos indefesos
que enfeiam a paisagem. Imaginei poderosos "cappi" encostando a barriga no balcão e acumulando trocados diários com a
venda de produtos de baixo valor.
À luz das conclusões dos investigadores, mudei minha percepção sobre os comerciantes. Agora, quando entro na padaria do
bairro, olho bem nos olhos do
padeiro, indagando-me se, debaixo do branco inocente do fermento, não existe o pó letal do
cianureto. Quando entro numa
loja de bijuterias, temo que o
balconista enfie na minha jugular a adaga da Cleópatra, feita
de latão dourado. E o que não
pensar do farmacêutico, do que
não será capaz, mexendo com
aquelas fórmulas incompreensíveis?
Para a maior cidade do hemisfério Sul, já é suficiente a vergonha do assassinato de mendigos
e da própria existência de mendigos sem teto para morar. Não
precisavam aumentar mais minha humilhação de cidadão
paulistano.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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