São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2004

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LUÍS NASSIF

O comerciante é o culpado

Uma velhinha que mora no oitavo andar de um prédio da rua Boa Vista, centro de São Paulo, sempre se incomodou com a presença de mendigos na sua rua. Ela ainda não foi arrolada como suspeita de ter encomendado a chacina dos mendigos do centro de São Paulo.
O episódio virou questão nacional pela crueldade e pela intolerância. Devido à sua gravidade, as investigações só poderiam ter sido confiadas a policiais atilados, argutos, desses capazes de esmiuçar o ambiente com olhos de lince e tirar conclusões com o cérebro de uma Agatha Christie.
Rapidamente os bravos investigadores puseram-se a campo e definiram sua linha de investigação. A quem os mendigos prejudicavam? Esqueceram-se da velhinha do oitavo andar, mas lembraram-se dos comerciantes do centro.
Como os comerciantes se incomodam com os mendigos, é possível que eles tenham encomendado sua morte a assassinos profissionais. Não é determinado comerciante, com ficha criminal, é "o comerciante", assim, genericamente, porque -fiquei sabendo agora- é da natureza dos comerciantes contratar assassinos profissionais para se livrarem de mendigos incômodos.
Como duvido de que o caso tenha sido colocado nas mãos de pessoas despreparadas, só me resta acreditar que eles sabem sobre comerciantes muito mais do que ousaria supor minha vã imaginação.
Imaginava que o comerciante varejista -o suspeito- fosse o sujeito que, atrás do balcão, cuidasse de vender seu produto no varejo. Não tem veleidades de enriquecimento rápido. Depende do trabalho diuturno e de andar na linha. Seus maiores ativos são endereço fixo (o ponto) e clientela. Às vezes o aperto pode até obrigá-lo a praticar sonegação, mas é o máximo que ousa, e em última instância. Ele se pela de medo de seu nome inscrito na Serasa, de um título protestado, de ser alvo de uma ação trabalhista.
Tendo em vista o custo representado por uma acusação de assassinato, em geral as pessoas utilizam essa prerrogativa para atos mais rentáveis, como tráfico de drogas, seqüestro, assaltos, roubos de carga ou mesmo crimes passionais, não para mandar matar mendigos indefesos que enfeiam a paisagem. Imaginei poderosos "cappi" encostando a barriga no balcão e acumulando trocados diários com a venda de produtos de baixo valor.
À luz das conclusões dos investigadores, mudei minha percepção sobre os comerciantes. Agora, quando entro na padaria do bairro, olho bem nos olhos do padeiro, indagando-me se, debaixo do branco inocente do fermento, não existe o pó letal do cianureto. Quando entro numa loja de bijuterias, temo que o balconista enfie na minha jugular a adaga da Cleópatra, feita de latão dourado. E o que não pensar do farmacêutico, do que não será capaz, mexendo com aquelas fórmulas incompreensíveis?
Para a maior cidade do hemisfério Sul, já é suficiente a vergonha do assassinato de mendigos e da própria existência de mendigos sem teto para morar. Não precisavam aumentar mais minha humilhação de cidadão paulistano.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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