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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Esperança e sofrimento

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Eu sei , leitor, que, para a imprensa diária, a semana passada é pré-história. O passado está apodrecendo a uma velocidade cada vez maior. Para o jornalismo de televisão, até a notícia da véspera costuma ser irrelevante.
Mas tenho que falar hoje de um episódio da última sexta-feira, que ficou cravado na alma dos brasileiros. Refiro-me à viagem do presidente da República a Washington. A maioria não acompanha, nem pode acompanhar, as sutilezas e complexidades das relações Brasil-EUA. Além disso, a substância dos encontros presidenciais fica sempre envolvida em uma densa névoa de formalidades, declarações inócuas e lero-lero diplomático.
Nessas situações, o jornalismo audiovisual é insubstituível. "Só os superficiais não julgam pelas aparências", dizia Oscar Wilde. Se o leitor acompanhou o noticiário televisionado na sexta passada, especialmente a entrevista dos dois presidentes e, depois, a entrevista coletiva do nosso, terá ficado certamente com uma sensação desagradável.
O presidente Bush, tranquilo, relaxado, sorria com um ar levemente superior. Já o visitante brasileiro estava tenso, cenho franzido, pouco à vontade, talvez intimidado. Em alguns momentos, usou frases e imagens infelizes, que deixaram transparecer insegurança e até um sentimento de inferioridade. Não vou recapitulá-las para não deprimir o leitor ainda mais. Esperemos que tenha sido apenas uma tremedeira temporária. Ou uma parte do "on the job training" (treinamento no emprego) por que passa todo presidente, inevitavelmente.
O comunicado conjunto dos governos do Brasil e dos Estados Unidos, divulgado no mesmo dia, confirmou que havia motivos para inquietação (a íntegra foi publicada pela Folha, no sábado, à pág. A6). Esse documento contém, entre outros aspectos problemáticos, um endosso à idéia de que "o livre comércio impulsiona a prosperidade e o desenvolvimento". Essa afirmação foi feita sem nenhuma qualificação ou ressalva, sem nenhuma referência aos efeitos da liberdade de comércio entre economias de diferentes níveis de desenvolvimento.
Ora, uma coisa é o livre comércio entre nações que se encontram em nível semelhante de desenvolvimento. Outra, completamente diferente, é a abertura de mercados entre parceiros estruturalmente desiguais, como ocorreria no caso de uma eventual Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Quando eram um país relativamente menos desenvolvido, desde a Independência até o final do século 19, os Estados Unidos nunca aceitaram teses desse tipo -e não teriam chegado aonde chegaram se as tivessem aceito. Durante todo esse período, e mesmo depois, as políticas comerciais dos EUA foram sistematicamente protecionistas. A teoria da economia política britânica de que a liberdade de comércio com a Inglaterra e outros países da Europa redundaria em benefícios para os EUA era encarada com grande ceticismo e cautela pelos norte-americanos.
Até hoje, os EUA não seguem senão seletivamente a cartilha do liberalismo. Mesmo quando negocia áreas de livre comércio, como a Alca, Washington sempre insiste em excluir da liberalização os seus setores pouco competitivos, "sensíveis a importações". E se recusam a tratar dos temas que não são do seu interesse, remetendo-os para a OMC (Organização Mundial do Comércio) ou, pior, se recusando pura e simplesmente a negociá-los.
Abordei esses pontos em trabalho recente, apoiando-me na minuta do acordo da Alca, em documentos oficiais do Executivo dos EUA e no mandato negociador aprovado pelo Congresso daquele país ("A Alca e o Brasil", Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, Coleção Documentos, Série Economia, nº 18, março de 2003).
Invoco, para terminar, dois grandes artistas. Fernando Pessoa escreveu certa vez que tinha mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os sonhos impossíveis são uma "música da alma, que embala sem nada dizer". Mas quem sonha o possível, disse ele, "tem a possibilidade real da verdadeira desilusão".
Parece-me, leitor, que a esperança de escapar da Alca, com todos os seus inconvenientes e ameaças à soberania do Brasil, está mais para o segundo do que para o primeiro tipo de sonho.
Assim, episódios como o da sexta passada fazem sofrer. Mais racional, sem dúvida, seria evitar cuidadosamente todas as esperanças e sonhos possíveis.
Mas não. Como escreveu Thomas Hardy, numa passagem difícil de traduzir em sua bela simplicidade, "each of us (...) has some dream, some affection, at least some remote and distant hope which, though perhaps starving to nothing, still lives on, as hopes will" ("cada um de nós (...) tem algum sonho, alguma afeição, pelo menos alguma esperança remota e distante que, embora talvez desfalecendo de fome, continua vivendo, como é próprio das esperanças").
Os governantes que por inépcia, medo ou covardia frustrarem as nossas esperanças possíveis -esperanças que eles mesmos cultivaram- não perdem por esperar. Vão pagar, cedo ou tarde, um preço político arrasador.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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