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CRIAÇÃO & CONSUMO
Pelo amor de Deus, atletas, deixem Cristo em paz
MARCELO PIRES
Somos o país do futebol. E somos também o maior país católico do mundo. Nada mais natural que, no domingo brasileiro,
assistir ao time do coração seja
tão sagrado quanto ir à missa.
Escrevi o parágrafo acima e
imediatamente percebi nele um
total anacronismo. A religião e
o futebol andaram mudando
muito. Nestes tempos de aeróbica da fé, o catolicismo não só obsoletou a ritualidade do domingo como obsoletou a ritualidade
da própria missa. Basta ligar a
TV, não importa dia, não interessa horário, para descobrir alguém rezando. E rezando espetacularmente, já que, caros telespectadores, estamos ao vivo e
em cores.
Os dirigentes dos clubes -que
parecem ter cabeça só para usar
cartola- também atentaram
contra a magia dos nossos domingos, transformando os calendários dos campeonatos em
um verdadeiro calvário. Agora,
somos obrigados a testemunhar
coisas estranhas como uma
quinta de futebol, por exemplo.
Se não bastasse a superexposição de jogos e preces, os jogos e
as preces andam se sobrepondo
no depoimento de muitos jogadores. Os atletas não param de
falar em Cristo. Chegamos, na
verdade, ao assunto deste "Criação & Consumo".
Os clichês antigos das transmissões de futebol ("O time tá
unido, a equipe tá preparada")
estão sendo substituídos por
aborrecidos sermões, com direito a péssimas citações da Bíblia
e a demonstrações de fé cada vez
mais televisivas. É um show de
braços elevados aos céus, mãos-postas, sinais-da-cruz e olhos fechados com força, muita força.
A intensidade em fechar os
olhos, aliás, é uma das formas
mais recorrentes de revelar às
câmeras toda a intensidade de
uma grande fé.
Com todo o respeito, e ciente
de que não passo de um simples
mortal, às vezes me pego pensando no embaraço de Jesus
Cristo: "Oh, Pai, devo atender às
orações do time de verde ou às
rezas do time de branco?". Como continuamos assistindo a vitórias e derrotas nos jogos brasileiros, percebo, aliviado, que
Cristo está agradecido a seus devotos, mas reage com magnitude. Se Ele estivesse escutando todos, estaríamos nos aborrecendo com um empate atrás do outro: Palmeiras 11 x 11 São Paulo,
Corinthians 25 x 25 Santos, Lusa
30 x 30 Guarani.
Na verdade, Jesus nem tem
tempo para dispensar tanta
atenção assim aos nossos jogadores, marmanjões famosos,
saudáveis e, muitas vezes, milionários. O Brasil tem muito mais
miseráveis clamando por engolir um frango do que goleiros
crentes clamando por não engolir.
Eu sei que este texto pode soar
leviano a muita gente. Não gostaria que estas linhas fossem entendidas como desrespeito à fé
alheia. Pelo contrário. Quem
anda cometendo excessos, a
meus ver, são esses evangélicos
de chuteira, esses cristãos de calças curtas. Sempre achei que a
sinceridade de uma prece é proporcional à discrição com que
ela é vivenciada. E, se na igreja
ninguém fica falando em futebol, por que ficar falando de religião nos estádios? A mim não
cheira bem quando a religiosidade resolve filiar-se a qualquer
tipo de agremiação -esse tipo
de tabelinha costuma gerar as
seitas mais radicais.
Lembre-se: a carreira de um
jogador não dura muito tempo.
Um homem jovem, de 35 anos,
já é velho para o futebol. Os nossos craques, maliciosamente ou
não, devem estar percebendo
que virar profissional da "alma"
é uma ótima saída para quando
o corpo não corresponder mais
às exigências do esporte.
O país inteiro, recentemente,
viu a conversão do ponta-direita Muller em pastor evangélico.
Nada contra o Muller. Cito ele
apenas na condição de um precursor. Tenho certeza de que, em
breve, veremos muitos outros
craques da seleção suando a camisa Armani e o terno Prada
nas mais diversas Assembléias
de Deus.
E, se os jogadores, ingênuos,
realmente não estiverem percebendo quanto um intervalo de
jogo tem potencial para se transformar no mais potente dos púlpitos, muitos cartolas, sejam dos
clubes, sejam das igrejas, já devem estar planejando maneiras
de transformar essa doutrinação -doutrinação feita em horário nobre para todo o território nacional- em dízimos no
futuro.
E, cá entre nós, na boa-fé dos
jogadores eu posso até acreditar. Mas na dos cartolas, nunca.
Marcelo Pires é diretor de Criação da W/Brasil
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