São Paulo, Sábado, 26 de Junho de 1999
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CRIAÇÃO & CONSUMO
Pelo amor de Deus, atletas, deixem Cristo em paz

MARCELO PIRES
Somos o país do futebol. E somos também o maior país católico do mundo. Nada mais natural que, no domingo brasileiro, assistir ao time do coração seja tão sagrado quanto ir à missa.
Escrevi o parágrafo acima e imediatamente percebi nele um total anacronismo. A religião e o futebol andaram mudando muito. Nestes tempos de aeróbica da fé, o catolicismo não só obsoletou a ritualidade do domingo como obsoletou a ritualidade da própria missa. Basta ligar a TV, não importa dia, não interessa horário, para descobrir alguém rezando. E rezando espetacularmente, já que, caros telespectadores, estamos ao vivo e em cores.
Os dirigentes dos clubes -que parecem ter cabeça só para usar cartola- também atentaram contra a magia dos nossos domingos, transformando os calendários dos campeonatos em um verdadeiro calvário. Agora, somos obrigados a testemunhar coisas estranhas como uma quinta de futebol, por exemplo.
Se não bastasse a superexposição de jogos e preces, os jogos e as preces andam se sobrepondo no depoimento de muitos jogadores. Os atletas não param de falar em Cristo. Chegamos, na verdade, ao assunto deste "Criação & Consumo".
Os clichês antigos das transmissões de futebol ("O time tá unido, a equipe tá preparada") estão sendo substituídos por aborrecidos sermões, com direito a péssimas citações da Bíblia e a demonstrações de fé cada vez mais televisivas. É um show de braços elevados aos céus, mãos-postas, sinais-da-cruz e olhos fechados com força, muita força. A intensidade em fechar os olhos, aliás, é uma das formas mais recorrentes de revelar às câmeras toda a intensidade de uma grande fé.
Com todo o respeito, e ciente de que não passo de um simples mortal, às vezes me pego pensando no embaraço de Jesus Cristo: "Oh, Pai, devo atender às orações do time de verde ou às rezas do time de branco?". Como continuamos assistindo a vitórias e derrotas nos jogos brasileiros, percebo, aliviado, que Cristo está agradecido a seus devotos, mas reage com magnitude. Se Ele estivesse escutando todos, estaríamos nos aborrecendo com um empate atrás do outro: Palmeiras 11 x 11 São Paulo, Corinthians 25 x 25 Santos, Lusa 30 x 30 Guarani.
Na verdade, Jesus nem tem tempo para dispensar tanta atenção assim aos nossos jogadores, marmanjões famosos, saudáveis e, muitas vezes, milionários. O Brasil tem muito mais miseráveis clamando por engolir um frango do que goleiros crentes clamando por não engolir.
Eu sei que este texto pode soar leviano a muita gente. Não gostaria que estas linhas fossem entendidas como desrespeito à fé alheia. Pelo contrário. Quem anda cometendo excessos, a meus ver, são esses evangélicos de chuteira, esses cristãos de calças curtas. Sempre achei que a sinceridade de uma prece é proporcional à discrição com que ela é vivenciada. E, se na igreja ninguém fica falando em futebol, por que ficar falando de religião nos estádios? A mim não cheira bem quando a religiosidade resolve filiar-se a qualquer tipo de agremiação -esse tipo de tabelinha costuma gerar as seitas mais radicais.
Lembre-se: a carreira de um jogador não dura muito tempo. Um homem jovem, de 35 anos, já é velho para o futebol. Os nossos craques, maliciosamente ou não, devem estar percebendo que virar profissional da "alma" é uma ótima saída para quando o corpo não corresponder mais às exigências do esporte.
O país inteiro, recentemente, viu a conversão do ponta-direita Muller em pastor evangélico. Nada contra o Muller. Cito ele apenas na condição de um precursor. Tenho certeza de que, em breve, veremos muitos outros craques da seleção suando a camisa Armani e o terno Prada nas mais diversas Assembléias de Deus.
E, se os jogadores, ingênuos, realmente não estiverem percebendo quanto um intervalo de jogo tem potencial para se transformar no mais potente dos púlpitos, muitos cartolas, sejam dos clubes, sejam das igrejas, já devem estar planejando maneiras de transformar essa doutrinação -doutrinação feita em horário nobre para todo o território nacional- em dízimos no futuro.
E, cá entre nós, na boa-fé dos jogadores eu posso até acreditar. Mas na dos cartolas, nunca.



Marcelo Pires é diretor de Criação da W/Brasil

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