São Paulo, Sábado, 26 de Junho de 1999
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LUÍS NASSIF
O bug do fim do mundo

Anunciaram e garantiram que o mundo ia acabar. Eram os anos 40 e a superstição permitiu ao grande Assis Valente um samba histórico no qual dizia que, por conta do fim do mundo, "beijei a boca de quem não devia, peguei na mão de quem não conhecia".
Vivo fosse, Assis Valente iria criar outro samba para imortalizar o "Bug do Fim do Mundo". O penoso trabalho do jornalismo nos obriga, vez por outra, a conviver com arautos do fim do mundo, profetas das últimas verdades, autores de soluções milagrosas para todos os problemas nacionais. Mas esse tal do bug do milênio superou a invasão de sacis no sul de Minas, nos anos 50, o chupa-cabras e o ET de Varginha.
Não que o bug não exista. O problema central é a utilização de datas. Sistemas antigos utilizavam dois algarismos para o campo ANO. Assim, 00 refere-se a 1900. Se alguém gravar o ano 2005 como 05, o sistema lerá como 1905.
Há três anos, pelo menos, que os sistemas estão sendo adaptados para conviver com o bug. É um problema que ocorre em sistemas antigos, em "assembler", linguagem de máquina ou coisa parecida, de difícil edição, mas que não são produzidas há mais de dez anos. Programas produzidos de alguns anos para cá, desde os antigos Cobol, Clipper ou Pascal, com linguagens estruturadas, têm facilidades adicionais para resolver a questão.
No entanto montou-se um terrorismo dos mais hilariantes, digno de uma peça radiofônica de Orson Welles. O leitor Arnaldo Pereira lembra que, "desde minha infância, pude conviver com inúmeros "perigos", "chegadas" e "salvações" que acabaram por não ocorrer ou nunca existiram: o perigo soviético, o perigo nuclear, o perigo asiático, o perigo alienígena (os marcianos), o meteorito que se chocaria com a terra, o cometa Halley, o perigo do colesterol, entre tantos outros. Todos renderam muito para alguns".
Mas não há paralelo com os "perigos do bug". "Tremendos e irrecuperáveis malefícios inexoravelmente abater-se-ão sobre os mortais: aviões não saindo, saindo e não chegando, talvez caindo; blecautes duradouros; perdas bancárias; faltas d'água abissais; escassez de comida etc.", diz Arnaldo.
O marketing do terrorismo é estupendo. Esta semana mesmo os jornais divulgaram uma estimativa de uma tal consultoria Milliman & Robertson, provavelmente especialista em bugs, citando que as seguradoras americanas poderão ter de pagar até US$ 35 bilhões por prejuízos causados pelo bug do milênio.
Constata Arnaldo: "No mercado nacional, as tarifas de programação, remuneradas por linha de programa revisto, nos últimos meses tiveram seus valores multiplicados por três, quatro ou cinco, diante da demanda ensandecida".
No entanto uma avaliação de leigo, fundada no bom senso, indica que apenas um contingente restrito de sistemas poderá oferecer algum perigo:
* Sistemas que efetuem operações de cálculo de prazo a partir de datas: isso é comum em programas bancários e financeiros. Pergunta ele: "Vai me dizer que os bancos já não resolveram isso?". É evidente, mesmo porque há alguns anos todos eles já efetuaram operações de longo prazo que excedem o ano 2000.
* Que o resultado dessas operações tenham efeito sobre outras variáveis: valores monetários, datas operacionais etc., que possam vir a resultar em erros operacionais. Se considerarmos a velocidade de desenvolvimento da microinformática, que desenvolveu-se principalmente nos últimos 15 anos, já não superou em grande parte a questão?
A conclusão óbvia é que "uma quantidade potencialmente enorme de problemas, decorrentes na verdade de incompetência, negligência ou mesmo dolo, poderá ser candidamente atribuída ao bug do milênio", conclui o leitor, minutos antes de ser devorado por um bug desgarrado que invadiu sua tela e o levou para as profundezas do inferno.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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