São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2007

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PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Um mundo kafkiano


A distribuição dos votos no FMI é absurda: pequenos países europeus têm mais peso que grandes da periferia


O GRANDE maestro Herbert von Karajan recebeu certa vez um telefonema do compositor William Walton: "Herbert, estou escrevendo um tema e variações. Já escrevi as variações, mas ainda não tenho o tema!".
Essa situação é mais comum do que se imagina. Acontece até com um redator de modestos artigos semanais. Às vezes, tenho um episódio ou um relato instigante e fico atrás de um tema para justificar a variação. O que parece então o assunto do artigo é, na verdade, o desdobramento de algum incidente cômico ou paradoxal.
Essa é a minha situação hoje. Tenho a variação: uma das histórias preferidas de Abraham Lincoln. Como presidente, ele enfrentava uma montanha de pedidos de emprego. Um candidato a uma certa função, ao preencher o formulário, empacou quando chegou à pergunta: "Causa da morte do pai?". Acontece que o pai, um ladrão de cavalos, tinha sido enforcado. O candidato pensou, pensou e acabou respondendo: "Meu pai estava participando de uma cerimônia pública quando a plataforma cedeu".
Evitar a verdade sem mentir -é a arte que todos os políticos tentam praticar. Eu nunca tive esse talento. Outro dia, arrumando os meus livros no apartamento aqui em Washington, topei com uma publicação dos trabalhos apresentados em um seminário organizado pelo FMI, que inclui um texto meu. Foi em 1985. Os anfitriões não devem ter gostado muito da minha contribuição. Nada de "a plataforma cedeu". Fui direto e claro: "O Fundo é obrigado, por dever de ofício, a apresentar-se sempre como uma instituição neutra, de caráter supranacional, mas o fato conhecido é que se trata de uma instituição controlada pelos EUA e demais países industrializados. Os sete principais países capitalistas industrializados controlam cerca de 50% do poder de voto".
Hoje, 22 anos depois, estou aqui como diretor-executivo no FMI e constato, espantado, que boa parte do meu texto juvenil poderia ser republicada sem alterações ou com atualizações marginais. Nesse meio tempo, caiu o Muro de Berlim, o bloco soviético se desintegrou, a própria URSS foi desmembrada e a China fez a sua transição para uma economia de mercado. Países emergentes, como a própria China, a Índia e o Brasil, adquiriram mais influência no sistema internacional. O número de países-membros do Fundo aumentou de 152 para 185.
Não obstante, os sete principais países desenvolvidos continuam controlando 45% dos votos no FMI. O conjunto dos países desenvolvidos detém 61%. A estrutura de cotas e votação tem aspectos absurdos. Por exemplo: vários pequenos países europeus têm mais votos do que grandes países da periferia. A Áustria tem mais peso do que a Nigéria. A Holanda, mais do que o Brasil. A Suíça, mais do que a Indonésia. A Bélgica, mais do que a Índia.
Franz Kafka não faria melhor. O meu antecessor mais ilustre, Alexandre Kafka, uma pessoa notável e muito respeitada aqui no Fundo, um brasileiro, de origem tcheca, nascido em Praga, que foi diretor-executivo por 32 anos, era parente do grande escritor tcheco. Nada mais apropriado. O FMI é uma construção tipicamente kafkiana. Claro que não por obra de Alexandre Kafka, que representava o Brasil e outros países em desenvolvimento.
Está em andamento uma reforma no FMI que busca corrigir ao menos parte dessas distorções e aumentar a participação dos países em desenvolvimento. A resistência é feroz, e a discussão avança lentamente. Veremos o que se poderá conseguir.

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. , 52, escreve às quintas-feiras nesta coluna. Diretor-executivo no FMI, representa um grupo de nove países (Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago).

pnbjr@attglobal.net


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