São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desajuste fiscal e abertura financeira

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

É correto afirmar que, nos idos de 1994, na partida do Plano Real, a situação financeira do setor público brasileiro era invejável. Nenhum dos planos anteriores de estabilização contou com essa vantagem. O ajuste fiscal e o encolhimento do endividamento público antecederam o Real e foram executados pelo governo anterior. Em 1993, por exemplo, o governo tinha superávit primário e operacional e tanto a dívida líquida como a dívida mobiliária eram quase insignificantes como proporção do PIB (Produto Interno Bruto).
É preciso recordar que, desde 1995, depois da crise mexicana, a taxa básica de juros se manteve num patamar muito elevado para sustentar o financiamento dos déficits em transações correntes e a acumulação de reservas. Foram esses fatores, aliás, e não os gastos excessivos do governo, como querem alguns, que alimentaram continuamente a dívida pública mobiliária. No período de 1992 a 1998, segundo dados do Banco Central, o governo obteve superávit no conjunto de suas despesas, incluída a Previdência Social e excetuados os juros.
Em 1994, o saldo da dívida interna líquida do setor público era de US$ 65 bilhões. Hoje, o valor desse estoque, calculado à taxa de câmbio vigente, está em torno de US$ 320 bilhões. Isso foi possível porque o dinheiro de fora que entrava na economia, formando reservas, foi "esterilizado" mediante a emissão de títulos públicos. Esse estoque crescente de papéis foi sendo engordado por taxas de juros reais, que, entre 1995 e 1998, ficaram na média em torno de 21% ao ano.
A elevada relação dívida/PIB parece ser a razão maior alegada pela equipe econômica para manter em níveis elevados a taxa Selic. Essa é a versão que aparentemente o ministro da Fazenda comprou pelo preço que lhe venderam, juntamente com o brinde do superávit primário e do "inflation targeting".
Em trabalho ainda não publicado, o professor Geraldo Biasotto, da Unicamp, diz que "a máxima de que juros elevados têm raiz no desequilíbrio das contas públicas não resiste a um mínimo de reflexão, dado que o controle dos movimentos de curto prazo do capital externo, a manipulação dos movimentos dos estoques financeiros e o controle da demanda agregada foram os elementos determinantes da política de juros governamental. Já no campo do chamado ajuste cambial, dois elementos merecem destaque. O primeiro deles é o duplo caráter da indexação da dívida mobiliária, que mostra o Estado como gestor da poupança nacional aplicada em títulos públicos em momentos de insegurança sobre seu valor em dólares. Ao mesmo tempo, o Estado aparece como o fornecedor de hedge cambial para os agentes econômicos expostos às operações em moeda estrangeira, sejam devedores de moeda estrangeira, sejam operadores de trocas mercantis com o exterior".
A inclinação das autoridades monetárias a aumentar os juros básicos decorre, hoje, em 2004, como deveria ser óbvio, da necessidade de manter em equilíbrio -para os possuidores de riqueza- as vantagens de aplicar seus haveres financeiros em reais ou em dólares. Diante da vulnerabilidade do balanço de pagamentos, as preocupações com a inflação são relevantes apenas na medida em que o BC está determinado a defender um piso para a taxa de juro real em torno de 10% ao ano, imaginada como suficiente para manter o interesse dos possuidores de riqueza nos títulos públicos denominados em reais. Apesar do superávit primário em elevação e dos excelentes resultados obtidos na conta corrente do balanço de pagamentos, o problema maior continua sendo o endividamento externo e suas relações com as exportações e as reservas líquidas em moeda forte.
Para as economias emergentes, as mudanças das últimas décadas não invalidaram, senão confirmaram a afirmação de Keynes no "Treatise on Money", a respeito da determinação da taxa de juros em um ambiente internacional exposto à livre movimentação de capitais: "A taxa de juro de um país é fixada por fatores externos e é improvável que o investimento doméstico alcance o nível de equilíbrio" (ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis).
Havia uma justa expectativa, nos tempos do dr. Gustavo: uma vez corrigida a sobrevalorização do real, adotados o câmbio flutuante e o regime de metas de inflação, as taxas de juros cairiam com mais rapidez. A expectativa era justa, porém ingênua. A ingenuidade deve ser atribuída à aplicação mecânica de pressupostos sobre as relações entre desvalorização e eliminação do risco cambial num mundo de perfeita mobilidade de capitais. Tais pressupostos são válidos para economias com moeda forte ou de boa reputação, dotadas de mercados financeiros amplos e profundos e, portanto, menos vulneráveis às mudanças de humor dos mercados financeiros.
Para os países de moeda não conversível, as taxas de juros e de câmbio se tornaram mais sensíveis às bruscas mudanças de expectativas dos possuidores de riqueza. Não é de espantar que, nesse sistema, seja mais freqüente a ocorrência de problemas de liquidez que dão lugar a amplas flutuações e crashs nos preços dos ativos e das moedas.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Universidade de Campinas. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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