São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

A voz do boêmio

De quem é a mais bela voz da música popular brasileira? Muitos dirão que foi Orlando Silva. Haverá os fãs de Francisco Alves, Dick Farney e Cauby Peixoto, que entrariam em qualquer lista. Entre os sertanejos, havia a voz poderosa de Pardinho, uma espécie de Orlando Silva caboclo. Dos contemporâneos, certamente Emílio Santiago, Dory Caymmi, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Há dois cantores de vozes excepcionais -Carlos José e José Luiz Mazziotti-, que não lograram o mesmo reconhecimento dos demais.
Mas não são poucos os que indicariam Nelson Gonçalves como a mais bela voz que o país já teve. Lembrei-me dele assistindo a um documentário sensível que passou recentemente no Canal Brasil.
Seu repertório não tinha a universalidade de Orlando Silva, capaz de atingir todos os públicos. Mas sua voz atingia todos os tons. Nelson começou a carreira quase como um sósia vocal de Orlando. Com esse estilo, Nelson tornou-se o desaguadouro natural de todos os fãs das interpretações românticas dos quatro grandes do período anterior: Orlando, Silvio Caldas, Chico Alves e Carlos Galhardo.
No final da década de 50, Nelson já se libertara da influência original de Orlando Silva e enveredara por um estilo próprio, cada vez mais dramático e carregado, que o afastou, gradativamente, da chamada parcela "culta" do público, mas o jogou nos braços do povo e dos boêmios. Ao pianista Arthur Moreira Lima, Nelson dizia que show bom era aquele em que o público saía mais cansado que o artista.
No documentário, há um depoimento divertidíssimo de Moreira Lima, que conta a reação de Nelson Gonçalves, quando ele lhe sugeriu gravar "Copacabana", o clássico de Alberto Ribeiro e João de Barro: "Não gravo, não! É música de veado!".
Gaúcho de Livramento, nascido em 1919, seu estilo de machão gaúcho tornou-se lendário. Não podia ver mulher na frente. Já no final da vida, não resistiu ao short de Elba Ramalho e passou a gravação alisando sua perna -conforme ela relatou, divertida, ao documentário.
No início dos anos 60, envolveu-se com cocaína e viveu um inferno comparável ao dos grandes músicos trágicos do jazz. Perdeu tudo, inclusive o casamento. Para se livrar do vício, trancou-se durante meses em um quarto, sem ver a luz do dia, alimentando-se por meio de uma fresta na porta. Recuperado parcialmente do vício, manteve um sucesso permanente por décadas e décadas. Seu repertório registra clássicos, como "Cadeira Vazia", de Lupicínio Rodrigues ("entra, meu amor, fica à vontade / me diz com sinceridade / o que desejas de mim"), o notável "Cabelos Brancos", de Marino Pinto e Herivelto Martins ("não falem dessa mulher perto de mim...").
Mas sua maior parceria foi com Adelino Moreira, o compositor da fossa, um clássico da dor de cotovelo brega. É dele "A Volta do Boêmio" ("boemia, aqui me tens de regresso"), "Fica Comigo Esta Noite", "Escultura", ainda hoje presente no repertório dos velhos boêmios.
Talvez tenha sido o maior vendedor de discos da história da música brasileira. Fala-se em mais de 2.000 canções gravadas, em 130 LPs. As estimativas sobre o total de discos vendidos variam de 50 milhões a 75 milhões de discos.
Sua técnica vocal era perfeita. Também vítima da cocaína, Orlando Silva perdeu o brilho da voz precocemente. Nelson conservou-o até perto do final da vida. Dominava todos os tons, cantava sem esforço e era dono de uma memória prodigiosa.
Lembro-me de um show dele com Fagner, quase ao final da vida. Fui cumprimentá-lo no camarim e indaguei-lhe se conhecia Zé Ratão, um violonista dos anos 40 do qual procuro o rastro há mais de 20 anos. Claro que conhecia e me deu detalhes do músico.
Morreu em 1998, aos 78 anos. E, num feito inédito na música brasileira, sua popularidade sobreviveu cinco décadas ao estilo que ele abraçou.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Lições contemporâneas - Luiz Gonzaga Belluzzo: Desajuste fiscal e abertura financeira
Próximo Texto: Para Meirelles, BC deve se preocupar só com inflação
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.