São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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ARTIGO

A sutileza de um Estado forte

JOSÉ MÁRCIO CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre 1930 e 1980, o Brasil viveu uma fase de intenso crescimento econômico. Um crescimento baseado em um processo de substituição de importações. Taxava-se a agricultura exportadora e, com os recursos assim obtidos, o Estado investia na criação de empresas estatais em setores considerados estratégicos e subsidiava, por meio de incentivos fiscais e creditícios, os investimentos privados naqueles setores industriais escolhidos. Quando os recursos não eram suficientes, o Estado lançava mão de sua capacidade de se endividar, tanto com credores nacionais e internacionais quanto com a população (por meio da dilapidação das reservas do sistema de Previdência Social, por exemplo).
Ao mesmo tempo em que gerava elevadas taxas de crescimento, esse modelo de desenvolvimento, que era calcado no aumento de intensidade na utilização dos fatores de produção, capital e trabalho, tinha três efeitos perversos.
Em primeiro lugar, concentrava cada vez mais a renda nas mãos dos detentores do capital, na medida em que os recursos do Estado eram a eles direcionados, e os investimentos na população (educação, saúde etc.) eram sistematicamente deixados em segundo plano.
Em segundo lugar, criava uma estrutura produtiva extremamente ineficiente e não competitiva, devido à necessidade de proteção à indústria nacional decorrente da política de substituição de importações.
Terceiro, enviava a conta para as gerações futuras, com o aumento do endividamento.
A crise fiscal do Estado, combinada à crise da dívida externa, inviabilizaram esse modelo a partir do final dos anos 70. De um lado, a moratória do início dos anos 80 cortou o acesso do país ao mercado financeiro internacional, forçando a obtenção de elevados superávits na balança comercial. De outro, dado o alto grau de ineficiência e o baixo nível de competitividade da indústria brasileira, a obtenção de superávits comerciais somente era possível com maior proteção comercial e forte redução das importações. Os resultados foram redução da produtividade e da competitividade, baixas taxas de crescimento, aceleração inflacionária permanente, aumento da pobreza e maior concentração da renda.
Se, por um lado, a abertura da economia e a renegociação da dívida no início dos anos 90 gerou um aumento da produtividade e da eficiência no setor produtivo, devido ao aumento da concorrência, por outro, criou as condições para que o Brasil voltasse a ter acesso ao mercado internacional de capitais. Foi a combinação destes dois fatores que viabilizou a estabilização da economia em 1994. Porém essa mudança de rumo significou a adoção de um novo modelo de desenvolvimento.
Nesse novo modelo, o Estado tem um papel muito diferente do modelo anterior. Em lugar de executar e promover os investimentos pelas empresas estatais e por incentivos fiscais e de crédito aos investidores privados, a função do Estado passou a ser gerar incentivos com mecanismos de mercado, que sejam capazes de induzir os empresários privados a investir nos setores que tenham maior capacidade de produzir eficientemente e sejam competitivos.
Como nossas instituições foram desenhadas para sustentar um modelo de estado intervencionista, reformá-las tornou-se fundamental para que os mercados dêem os sinais corretos aos empresários e aos trabalhadores e os investimentos, tanto em capital físico quanto em capital humano, sejam realizados de forma eficiente. Daí a necessidade das reformas microeconômicas, como a nova Lei de Falências, a reforma da legislação trabalhista, a reforma da legislação tributária etc. Sem elas, a competitividade da economia diminui e ela não cresce.
Ou seja, o Brasil está transitando de um modelo de economia de comando, com planejamento estatal impositivo e concentrador de renda, para um modelo no qual a indução por mecanismos de mercado é a mola mestra do crescimento. E, nesse novo modelo, além de reformar as instituições de tal forma a fazer com que elas tenham o papel de induzir eficiência na alocação de recursos, cabe ao Estado direcionar os recursos fiscais disponíveis para aqueles setores nos quais o investimento tem uma taxa de retorno privada menor que a taxa de retorno social, como educação, saúde e ciência e tecnologia. Um papel mais sutil do que no modelo anterior, porém mais sofisticado e não menos importante.
A concentração dos investimentos do Estado em setores como educação, saúde e ciência e tecnologia, tem três efeitos importantes, no longo prazo. Primeiro, transforma o país de um país com oferta abundante de mão-de-obra não qualificada em um país com oferta abundante em mão-de-obra qualificada. Como resultado, no longo prazo, o país se torna competitivo na produção de bens e serviços de alto valor adicionado (como, aliás, ocorreu nos países do leste asiático). Segundo, reduz a desigualdade da distribuição da renda e a pobreza. Finalmente, melhora a eficiência na alocação de recursos e, portanto, aumenta a competitividade e a taxa de crescimento de longo prazo da economia.
O problema é que implementar um novo modelo de desenvolvimento leva tempo. As resistências daqueles que se beneficiavam do modelo antigo e que não mais se beneficiam do novo são grandes. Agentes que se acostumaram a obedecer ao comando do Estado se sentem perdidos quando têm que fazer suas próprias escolhas diante de sinais de mercado que precisam ser analisados e decifrados com cuidado. E a resistência aumenta, à medida que o novo dá sinais de sucesso, algo que começa a ficar claro no Brasil. O salto qualitativo da agropecuária brasileira nos últimos anos, um resultado direto da abertura comercial, fim da transferência de renda da agricultura para a indústria, investimento em ciência e tecnologia e a capacidade de gerar superávits em conta corrente com elevadas taxas de crescimento do produto, são alguns sinais claros de que o novo começa a dar os resultados desejados. E é neste momento que a persistência no caminho escolhido, apesar das resistências redobradas dos perdedores, será capaz de gerar crescimento sustentável com melhor distribuição da renda.


José Márcio Camargo é professor do Departamento de Economia da PUC-RJ e sócio da Tendências Consultoria Integrada.

O artigo do professor José Márcio Camargo vem compor debate sobre "neodesenvolvimentismo" levantado, no domingo passado, na Folha por uma entrevista do empresário Antônio Ermírio de Moraes e por um artigo do professor Luiz Carlos Bresser-Pereira.
Leia o artigo e a entrevista em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u89312.shtml


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