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Crise pune heterodoxia na América do Sul
Com políticas de subsídios, controle de preços e gasto elevado, Argentina, Equador e Venezuela estão entre os mais ameaçados na região
Risco-país das 3 economias já está em níveis indicativos de calote de dívida soberana; governantes resistem a medidas de ajuste fiscal
ÉRICA FRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A violência com a qual a crise
financeira global chegou por
aqui nos últimos dois meses
pode facilmente levar à conclusão de que o Brasil está entre os
emergentes mais afetados pela
turbulência nos mercados.
Conclusão verdadeira ou falsa?
A resposta depende de onde se
coloca o ponto de partida da
crise.
As fortes perdas amargadas
pelo mercado brasileiro (o
acionário, o cambial ou de dívida) nas últimas semanas foram,
sem dúvida, devastadoras. Mas
considerar os dias sombrios de
outubro deste ano como o início da maior crise financeira
desde a Grande Depressão parece errado. Os problemas no
mercado de hipotecas norte-americano começaram, de fato,
lá pelos idos de agosto de 2007,
embora sua dimensão dramática tenha sido desvendada gradualmente desde então.
Se considerados os últimos
13 meses desde que a crise começou -quando os mercados
financeiros globais já vinham
acusando o golpe do que estava
por vir-, o Brasil aparece, na
verdade, entre os emergentes
que menos sofreram. Desde o
fim de agosto de 2007, por
exemplo, o Brasil é, depois do
Chile, o emergente cujo risco
país, medido pelo banco JP
Morgan, menos subiu (considerando um grupo de 11 grandes economias).
Isso não quer dizer que o indicador brasileiro não tenha
disparado: o salto foi de consideráveis 216%, para 646 pontos, no fechamento da última
sexta-feira. Mas os riscos de
México, Rússia e África do Sul,
por exemplo, subiram mais de
400%, o da Hungria saltou
500% e os de Argentina, Venezuela e Equador aumentaram
entre 250% e 350% mas já operam em níveis indicativos de
calote de dívida soberana. Essa
história se repete de forma parecida, embora não idêntica,
nos outros mercados.
A lista de países mais atingidos com a crise financeira global ao longo do último ano
mostra que fundamentos macroeconômicos sólidos fazem a
diferença para investidores,
ainda que no auge do desespero
(caso das últimas semanas)
ainda prevaleça o chamado
comportamento de manada.
Focos
O maior foco de risco no
mundo emergente está no Leste Europeu, onde um grupo de
países exibe indicadores nada
animadores, como altos déficits em conta corrente, elevado
estoque de dívida externa e, em
alguns casos, bolhas no mercado de crédito. Entre os mais
vulneráveis, estão Hungria,
Ucrânia, Bulgária e Romênia.
Esses países terão o desafio duplo de conseguir recursos para
cobrir enormes necessidades
de financiamento externo e lidar com uma forte desaceleração nos mercados domésticos
de crédito em um ambiente
global em que a liquidez parece
ter evaporado. Em outras palavras, correm risco real de passar por um colapso sério.
Embora na América do Sul,
problemas como déficits significativos em conta corrente e
necessidades gigantes de financiamento externo pareçam ser
coisa do passado, depois do forte ajuste da última década, a região também tem seu centro
nevrálgico formado por Argentina, Equador e Venezuela. Não
por acaso os riscos soberanos
dos três países operam em níveis de default (calote).
Em comum, o trio tem governos que adotaram políticas
econômicas heterodoxas, que
foram mantidas até agora com
algum grau de sucesso -pelo
menos em termos de elevados
gastos sociais, que, nos casos de
Argentina e Venezuela, ajudaram a impulsionar taxas robustas de crescimento econômico
em anos recentes.
Mas a crise atual está provando que o modelo de altos subsídios governamentais, controles
de preços e elevado gasto público (entre outras muitas medidas altamente intervencionistas) só era sustentável em tempos de bonança externa.
Tarifas sobre exportação representam cerca de 13% da arrecadação tributária argentina
e cresceram de forma robusta
em anos recentes. No Equador,
somente na primeira metade
de 2008, a renda do petróleo
para os cofres públicos aumentou 268%, atingindo US$ 4,7 bilhões (o que equivale a mais de
40% da arrecadação total do
governo).
Na Venezuela, os dados que
mostram a dependência da
economia da renda petrolífera
impressionam: representa metade da arrecadação total do governo, cerca de 95% das receitas do setor exportador e aproximadamente 15% do PIB (Produto Interno Bruto).
Sem a forte demanda global,
que levou a um boom no setor
agrícola argentino e por um
bom tempo manteve a popularidade do casal Kirchner nas alturas, e sem os preços estratosféricos do petróleo, que sustentaram as políticas fiscais expansionistas de Hugo Chávez e,
mais recentemente, Rafael
Correa, o modelo econômico
dos três países ameaça ruir.
O resultado disso vai ser uma
inevitável forte desaceleração
econômica na Argentina e na
Venezuela, que, dados os níveis
quase asiáticos de crescimento
em anos recentes, será sentida
como recessão por um amplo
segmento das populações locais, principalmente os mais
pobres. Enquanto no Equador
a economia deverá continuar
crescendo de forma módica.
Mais riscos
Mas os riscos não param por
aí. O perigo real de um novo calote da dívida pública externa
pode rondar a Argentina e o
Equador em 2009. Um forte
ajuste fiscal pode ajudar a evitar o fim dramático. Mas os governos populistas dos dois países querem evitar isso a todo
custo. Isso ajuda a explicar a
mais recente tentativa do casal
Kirchner de acabar com o regime de previdência privada do
país e transferir seus fundos de
aproximadamente US$ 30 bilhões de volta para os cofres do
Estado.
No caso da Venezuela, acredita-se que, com o petróleo em
níveis próximos de US$ 75 o
barril (que deverá ser a média
de 2009), o país corre risco de
voltar a amargar um déficit em
conta corrente. Sem falar nos
efeitos devastadores para o ambicioso programa de gastos de
Hugo Chávez, tanto na própria
Venezuela quanto em outros
parceiros latinos (como Bolívia
e Nicarágua).
Uma lição da crise até agora é
que anos de políticas macroeconômicas responsáveis vão
ajudar a, pelo menos, amenizar
os seus efeitos em países como
Brasil e Peru. Outros como Argentina, Venezuela e Equador
correm o risco de continuar pagando o preço alto da crise por
alguns ou muitos anos depois
que o furacão atual tiver passado. Mas isso não é boa notícia
para ninguém na região. Nos
primeiros oito meses de 2008,
juntas, Argentina e Venezuela
absorveram mais de 10% das
exportações brasileiras.
ÉRICA FRAGA é editora sênior de América Latina da consultoria britânica Economist Intelligence Unit.
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