São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Por que "multinacionais" brasileiras?


LUCIANO COUTINHO

Cinco anos de câmbio sobrevalorizado, juros proibitivos, abertura comercial gratuita e privatização sem estratégia produziram um movimento sem precedentes de desnacionalização e de encolhimento dos grupos econômicos nacionais.
A nossa retardatária elite acorda agora, ainda confusa, para a realidade. O Brasil, após marcar passo nos anos 80, retrocedeu nos 90. Enquanto isso, algumas economias asiáticas (notadamente a Coréia do Sul, mas também a China e Taiwan) construíram grandes grupos econômicos -de porte e atuação globais, com crescente capacitação técnica na fronteira das tecnologias da informação e com afirmação de marcas mundiais.
Ainda nos últimos cinco anos, sob o impulso da extraordinária valorização dos mercados de capitais, uma onda avassaladora de fusões e aquisições vem aumentando a escala das grandes empresas mundiais e concentrando o capital em quase todos os setores das economias desenvolvidas.
Cooptada pelo neoliberalismo e precisando captar recursos no exterior para financiar o crescente déficit externo, o núcleo da equipe econômica do governo ignorou esses fatos e desdenhou das advertências.
A desnacionalização aos seus olhos era, além de oportuna, saudável. O capital estrangeiro ajudaria a superar mais depressa as nossas debilidades tecnológicas e gerenciais. Omitindo os efeitos maléficos da sua política de juros estratosféricos e da vulnerabilidade externa (risco-país) sobre os custos de capital, que sufocaram e ainda flagelam as empresas nacionais, essas foram injustamente estereotipadas pelas nossas autoridades econômicas como sendo ineficientes, atrasadas e predadoras.
É preciso, porém, rechaçar energicamente essa ideologia preconceituosa sem cair num nacionalismo emocional e igualmente preconceituoso. Existem razões sólidas e racionais para que a política econômica robusteça os grupos econômicos de capital nacional, habilitando-os a operar globalmente. As alinho a seguir:
1) é importante para o Brasil obter rendas no exterior sob a forma de royalties, lucros e dividendos para abater o crescente déficit estrutural nessa rubrica do balanço de pagamentos;
2) a existência de empresas nacionais com atuação mundial, aqui sediadas, aglutina centros de decisão que, embora privados, fortalecem economicamente o país;
3) sem dúvida, a formulação e a tomada de decisões estratégicas a partir do Brasil concentra em nosso território as atividades de alto valor agregado em gestão, finanças, inovação organizacional, desenvolvimento tecnológico e de marcas;
4) como resultado do item anterior, se localizam no país os melhores empregos e as melhores oportunidades de desenvolvimento profissional;
5) uma parcela importante dos investimentos diretos estrangeiros se faz por meio de associações, joint ventures e parcerias, o que requer a presença de empresas nacionais capacitadas, com porte adequado e higidez financeira.
Em resumo, a superação das deficiências competitivas do Brasil não pode prescindir de um conjunto de grupos nacionais de porte mundial. Sem isso não se desenvolverão núcleos endógenos de progresso tecnológico, capazes de afirmar marcas brasileiras, criar novos mercados e de gerar aqui atividades e empregos de elevada qualificação. O capital estrangeiro pode cumprir apenas em parte essas funções, pois tende a concentrar centros de inovação e atividades nobres nas respectivas matrizes.
É, portanto, urgente uma estratégia de formação de "campeões nacionais competitivos", que, a partir do Mercosul, se projetem como atores globais. Grandes grupos econômicos eficientes podem alavancar mais crédito, gerar mais capitalização e podem investir mais agressivamente. Podem, também, exportar vigorosamente para minimizar a nossa vulnerabilidade comercial. Coordenados, em articulação com o Estado, fortalecem o poder nacional. Sem eles, ficaremos excessivamente dependentes das estratégias de atores privados externos e reduzidos à mimetização -sem personalidade- de produtos, design, marcas e referências culturais alienígenas.
Não se recomenda qualquer restrição ao investimento direto estrangeiro, mas apenas que sejam criadas condições eficientes para fortalecer as empresas nacionais. Temos hoje poucos "global players". Ficamos reduzidos à Petrobras, à Embraer e à CVRD. A Sadia e a Gerdau são ainda promessas. A AmBev, infelizmente, corre o risco de ser inviabilizada. Poderíamos desenvolver logo grandes empresas mundiais na siderurgia, papel e celulose, petroquímica e em vários segmentos dos agronegócios. Deveríamos aspirar ter empresas fortes em segmentos das tecnologias da informação. Tudo isso requer uma nova perspectiva sobre o projeto que queremos para o Brasil no século 21.
Este país -ao contrário do que pensam os xenófilos- tem empresários, administradores, engenheiros, tecnólogos, designers, cientistas e outros profissionais competentes e criativos que, em condições menos desiguais, poderão assegurar presença global e desempenho competitivo às empresas brasileiras.


Luciano Coutinho, 53, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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