|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
A voz de São Paulo
Foi no Natal de 1957 ou 1958
que meu pai me deu minha primeira vitrolinha portátil. Era cor-de-rosa, se não me engano. O primeiro 78 que rodei acredito ter sido de Dorival Caymmi. Depois,
uns do Zé do Norte, que eu adorava. O terceiro ou quarto foi de
Inesita Barroso, a famosa "Marvada Pinga", de Laureano. Foi
paixão à primeira vista, e à vista
da paixão que dona Inesita provocava no meu velho.
Ainda hoje em dia, no programa "Viola, Minha Viola", da TV
Cultura, vê-se uma senhora bem
apanhada, bonitona. Naqueles
tempos, era linda, lembrando essa Babi, apresentadora de televisão. Com sua voz poderosa, transitava por todos os ritmos, mas
sem perder seu veio principal: a
música caipira do interior paulista.
Com sua voz poderosa e grave,
tornou-se a intérprete favorita
dos compositores dito nacionalistas, interpretando modinhas e
canções de Heckel Tavares (como
"Funeral de um Rei Nagô" e
"Banzo", em parceria com Murilo
Araújo), Valdemar Henrique,
Mário de Andrade (que pesquisava ritmos do interior). Depois,
com a voz sensual de cantora da
noite, gravou "Ronda", de Paulo
Vanzolini. Com a voz caricata de
caipira com bossa, consagrou os
melhores sambas de breque de
Billy Blanco. Gravou o clássico
"Estatuto da Gafieira" e uma outra que acho que só eu me lembro:
o "Moleque Valdemar" ("eu vim
aqui, prá acabar com seu cartaz,
moleque / viver somente da fama,
não é vantagem não, rapaz").
Digo que só eu porque logo que
vim para São Paulo alguém sugeriu, certa noite, que fôssemos ao
restaurante que Inesita Barroso
tinha acabado de montar, em
Santo Amaro.
Eu já tinha tomado uns chopes
a mais, estava com saudades e era
fã ardoroso de Inesita. Poços de
Caldas sempre conviveu com artistas, intelectuais e poderosos,
dos anos 20 aos 40. Um de nossos
orgulhos era não nos comportarmos como fãs deslumbrados,
quando aparecia alguém conhecido por lá. Mas com Inesita, confesso que achei que nossas tradições de impessoalidade estavam
ameaçadas.
Não deu outra. Chegando ao
restaurante, ocupamos três mesas, uma rapaziada alegre e barulhenta, e chamamos Inesita, que
ficou conversando simpaticamente com o grupo. E eu, no canto, olhando embevecido para ela.
Com aquele ar de caipira desconfiada, Inesita de vez em quando
olhava de soslaio para o moleque
aqui pensando, "vai dar besteira". Deu. Uma hora, não resisti,
fui até ela e perguntei se se lembrava do "Moleque Valdemar".
Ela disse que não, de certo achando que vinha alguma gozação. Aí
aproveitei que tinha quebrado o
gelo e me declarei de coração
aberto: "Dona Inesita, a senhora
é um monumento da música brasileira, que eu adoro desde que
era criancinha". Dona? Monumento? Criancinha? A mesa inteira chacoalhava aquela risada
coletiva, mas de boca fechada, para não desmoralizar o amigo. Foi
a maior demonstração de amizade coletiva que mereci até hoje.
Inesita Barroso só não se tornou
um nome nacional, do nível de
uma Eliseth Cardoso, por nunca
ter abandonado as raízes paulistas. A caixa de ressonância musical do país era o Rio de Janeiro,
mas ela não saía de São Paulo e
do seu interior. Começou na rádio Bandeirantes, do seu João
Saad, produzida por Evaldo Rui,
um dos ícones da história do rádio brasileira, e prosseguiu pela
Record.
Ao longo de toda sua carreira,
trouxe Cornélio Pires e seu "Bonde Camarão", o Capitão Furtado,
Piraci, Tonico e Tinoco para a
mesa da classe média. E os clássicos Mário de Andrade, Heckel
Tavares, Carlos Gomes, Valdemar Henrique, as modinhas do
império dos salões para os bares.
Recentemente, em um concurso
para escolher a música que melhor representava São Paulo,
duas das mais significativas
-"Ronda" e "Lampião de
Gás"- foram consagradas por
ela. Se o concurso fosse sobre a
"voz de São Paulo", daria Inesita
na mosca.
Depois do primeiro fora, ainda
repeti mais dois foras semelhantes com dona Inesita Barroso. Por
isso, com um controle maior sobre a escrita, declaro aqui, de público e absolutamente sóbrio de
bebidas, e ébrio de emoções: Inesita Barroso, muito obrigado.
E-mail: lnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Tendências Internacionais - Gilson Schwartz: OMC parte para ofensiva e ameaça ordem global Próximo Texto: Petróleo: EUA alertam para risco de estoque baixo Índice
|