São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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LUÍS NASSIF

A voz de São Paulo

Foi no Natal de 1957 ou 1958 que meu pai me deu minha primeira vitrolinha portátil. Era cor-de-rosa, se não me engano. O primeiro 78 que rodei acredito ter sido de Dorival Caymmi. Depois, uns do Zé do Norte, que eu adorava. O terceiro ou quarto foi de Inesita Barroso, a famosa "Marvada Pinga", de Laureano. Foi paixão à primeira vista, e à vista da paixão que dona Inesita provocava no meu velho.
Ainda hoje em dia, no programa "Viola, Minha Viola", da TV Cultura, vê-se uma senhora bem apanhada, bonitona. Naqueles tempos, era linda, lembrando essa Babi, apresentadora de televisão. Com sua voz poderosa, transitava por todos os ritmos, mas sem perder seu veio principal: a música caipira do interior paulista.
Com sua voz poderosa e grave, tornou-se a intérprete favorita dos compositores dito nacionalistas, interpretando modinhas e canções de Heckel Tavares (como "Funeral de um Rei Nagô" e "Banzo", em parceria com Murilo Araújo), Valdemar Henrique, Mário de Andrade (que pesquisava ritmos do interior). Depois, com a voz sensual de cantora da noite, gravou "Ronda", de Paulo Vanzolini. Com a voz caricata de caipira com bossa, consagrou os melhores sambas de breque de Billy Blanco. Gravou o clássico "Estatuto da Gafieira" e uma outra que acho que só eu me lembro: o "Moleque Valdemar" ("eu vim aqui, prá acabar com seu cartaz, moleque / viver somente da fama, não é vantagem não, rapaz").
Digo que só eu porque logo que vim para São Paulo alguém sugeriu, certa noite, que fôssemos ao restaurante que Inesita Barroso tinha acabado de montar, em Santo Amaro.
Eu já tinha tomado uns chopes a mais, estava com saudades e era fã ardoroso de Inesita. Poços de Caldas sempre conviveu com artistas, intelectuais e poderosos, dos anos 20 aos 40. Um de nossos orgulhos era não nos comportarmos como fãs deslumbrados, quando aparecia alguém conhecido por lá. Mas com Inesita, confesso que achei que nossas tradições de impessoalidade estavam ameaçadas.
Não deu outra. Chegando ao restaurante, ocupamos três mesas, uma rapaziada alegre e barulhenta, e chamamos Inesita, que ficou conversando simpaticamente com o grupo. E eu, no canto, olhando embevecido para ela. Com aquele ar de caipira desconfiada, Inesita de vez em quando olhava de soslaio para o moleque aqui pensando, "vai dar besteira". Deu. Uma hora, não resisti, fui até ela e perguntei se se lembrava do "Moleque Valdemar". Ela disse que não, de certo achando que vinha alguma gozação. Aí aproveitei que tinha quebrado o gelo e me declarei de coração aberto: "Dona Inesita, a senhora é um monumento da música brasileira, que eu adoro desde que era criancinha". Dona? Monumento? Criancinha? A mesa inteira chacoalhava aquela risada coletiva, mas de boca fechada, para não desmoralizar o amigo. Foi a maior demonstração de amizade coletiva que mereci até hoje.
Inesita Barroso só não se tornou um nome nacional, do nível de uma Eliseth Cardoso, por nunca ter abandonado as raízes paulistas. A caixa de ressonância musical do país era o Rio de Janeiro, mas ela não saía de São Paulo e do seu interior. Começou na rádio Bandeirantes, do seu João Saad, produzida por Evaldo Rui, um dos ícones da história do rádio brasileira, e prosseguiu pela Record.
Ao longo de toda sua carreira, trouxe Cornélio Pires e seu "Bonde Camarão", o Capitão Furtado, Piraci, Tonico e Tinoco para a mesa da classe média. E os clássicos Mário de Andrade, Heckel Tavares, Carlos Gomes, Valdemar Henrique, as modinhas do império dos salões para os bares.
Recentemente, em um concurso para escolher a música que melhor representava São Paulo, duas das mais significativas -"Ronda" e "Lampião de Gás"- foram consagradas por ela. Se o concurso fosse sobre a "voz de São Paulo", daria Inesita na mosca.
Depois do primeiro fora, ainda repeti mais dois foras semelhantes com dona Inesita Barroso. Por isso, com um controle maior sobre a escrita, declaro aqui, de público e absolutamente sóbrio de bebidas, e ébrio de emoções: Inesita Barroso, muito obrigado.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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