São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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ANÁLISE

Política vence economia no gasto social

VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Por onde a renda do trabalho, das empresas e os dinheiros públicos circularam na década do Plano Real? Como o Real e as políticas públicas do período influenciaram a distribuição da renda pelos diferentes setores sociais?
Não foi só o dinheiro dos impostos que se transformou em pagamento de juros para bancos. Nem só o fim da inflação reduziu a pobreza. Os caminhos do dinheiro também foram definidos por embates políticos, alguns anteriores ao Plano Real, e pelo peso da política sobre medidas econômicas.

Os bancos
No final de 1995, o primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso e do Real, os gastos federais com juros eram cerca de 21% dos gastos sociais do governo brasileiro. Em 1999, quando a fórmula original do Real implodiu, a moeda foi desvalorizada e os juros foram ao espaço, essa relação passou a 36%. A partir de 2001, os juros ficaram em torno de 33% dos gastos sociais: ganham os bancos e a classe média-alta que dispõe de renda para fazer aplicações financeiras lastreadas em títulos da dívida federal.
Mas, no mesmo ano de 1995, os pobres e indigentes eram 34% da população do país, contra os 42% de 1993. A renda dos 10% mais pobres dobrou no mesmo período (contra alta de 28% da renda média). É verdade que a partir de 1995 a taxa de pobreza e indigência permaneceu estagnada; que a desigualdade econômica não foi alterada na década do Real.
Apesar de os juros morderem mais e mais o orçamento federal, o gasto social cresceu.
Novas leis, em parte originadas da Constituição de 1988, em parte resultado de pressões de movimentos sociais, permitiram que mais gente recebesse os benefícios da assistência social e da Previdência rural, além de aumentarem o seu valor básico. Cerca de 65% dos benefícios da Previdência pagam um salário mínimo, que em 1995, cresceu 18% em termos reais.
Estudo de 2002 do então Ministério da Previdência e da Assistência Social mostra que o número de pobres teria estagnado em 45% e não em 34%, se não houvesse gastos previdenciários e da assistência social.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002-2003, em média cerca de 17% da renda de quem ganha até R$ 600 vem de benefícios da seguridade social. No Nordeste, os benefícios sociais são em média cerca de 20% da renda de quem ganha R$ 600, contra 10% de quem ganha entre R$ 2.000,00 e R$ 3.000,00.
O fim da inflação e o crescimento econômico dos primeiros dois anos do Real (cerca de 5% ao ano) fizeram sua parte. Também foi importante a redução relativa do preço dos alimentos.
Se a distribuição de renda permaneceu a mesma, a pobreza diminuiu e bancos e a classe média tiveram ganhos significativos com juros, houve mágica? Não. Em parte e nos primeiros quatro anos do Real, os recursos vieram do crescimento da economia. Em parte, houve déficit público e aumento da dívida do governo.

Colapso do Real
Mas essa equação muda de figura após o colapso de 1999, resultado da relutância de um governo candidato à reeleição em fazer reformas no plano, tais como a desvalorização controlada da moeda e o corte de gastos públicos.
A economia pára de crescer, com a exceção do ano 2000. A renda média do trabalho cai. O gasto com juros segue na tendência de crescimento, assim como o gasto social. A desigualdade e a pobreza não se alteram, diga-se de novo. E, mais uma vez, a conta parece não fechar.
De maneira indireta e aproximada, pode-se dizer que a economia real, no mundo do trabalho e das empresas, concentra renda: demite, rebaixa salários, fica mais informal, precariza o emprego. Mas os gasto sociais, em especial os com seguro-desemprego, transferências diretas de renda (como as do Fundo de Combate à Pobreza, imposto pelo Congresso a Fernando Henrique Cardoso) e a Previdência compensam, em parte, o baque.
A dívida pública impõe grande aumento da carga tributária. As alíquotas e/ou a arrecadação com contribuições sociais (INSS, Cofins, CPMF etc.) crescem 33% entre 1995 e 2001 (como proporção do PIB), contra 13% do gasto social federal. Parte das contribuições originariamente sociais é canalizada para a cobertura de despesas financeiras do governo (o que foi feito por meio de emenda constitucional que serviu de base para o Real e para o ajuste fiscal depois de 1998).
Apesar de as aposentadorias dos funcionários públicos ainda levarem 20% do gasto social em 2001, a repressão dos aumentos salariais dos servidores e a reforma da Previdência reduziram um pouco a fatia dos benefícios que tais trabalhadores auferiam.
De volta ao mundo da "economia real", o cenário a partir de 1997 se deteriora. A economia cresce muito devagar, a rentabilidade e os lucros do setor financeiro crescem em relação ao setor produtivo. A pobreza ainda cai no Nordeste, mas cresce em regiões metropolitanas do sul do país, em especial em São Paulo.
Menos gente trabalha na indústria, mais nos serviços, onde o emprego é mais informal e precário. A diferença de salários entre indústria e serviços cai, mas também recua a renda do trabalho nas metrópoles. O capital passa a abocanhar parte maior da renda nacional que o trabalho. Os preços das empresas de serviços públicos, privatizadas nos anos FHC, crescem relativamente mais. Gastos com educação e saúde permanecem constantes.
No caso dos outros determinantes dos fluxos de renda na sociedade, a política macroeconômica e a tributária, por exemplo, o balanço da atividade governamental no período é ambíguo.
Os impostos indiretos pesam muito mais no bolso dos mais pobres (são socialmente regressivos), o que não chega a ser compensado pela progressividade de impostos diretos (como o Imposto de Renda, que pesa mais no bolso dos mais ricos). Tal cenário não foi alterado de maneira significativa no período.
A política macroeconômica, a que define gastos públicos, taxas de juros e preços como o câmbio, se determinou o fim da inflação, também promoveu os desequilíbrios que resultaram na duplicação do tamanho relativo da dívida pública, na queda da renda do trabalho e na precarização do emprego depois de 1998.
Os gastos impostos pela dívida pública tornaram o sistema tributário ainda mais irracional e indutor de ineficiência econômica; impossibilitaram mudanças na distribuição social da carga de impostos. A necessidade de conter o aumento ainda maior da dívida limita os investimentos públicos em infra-estrutura, que poderiam reduzir a desigualdade, a pobreza e o desemprego dos mais pobres, tais como saneamento, habitação e construção civil.


A maioria dos dados deste texto foi retirada dos seguintes estudos: "Análise da Evolução e Dinâmica do Gasto Social Federal", de Jorge de Castro, Manoel de Moraes Neto, Francisco Sadeck, Bruno Duarte e Helenne Simões (Texto para Discussão 988, Ipea); "A Evolução da Informalidade no Brasil Metropolitano: 1991-1992", de Lauro Ramos (Texto para Discussão 914, Ipea); "O Funcionamento do Mercado de Trabalho Metropolitano Brasileiro: 1991-2002", de Lauro Ramos e Marcelo Britto (Texto para Discussão 1.011, Ipea); "Pobreza no Brasil", de Sonia Rocha, (Editora da FGV, 2003)


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