São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Caminhos e descaminhos do Real

ALOIZIO MERCADANTE

Nos anos 80, o Brasil e a América Latina viveram as conseqüências da crise da dívida externa, com fortes desequilíbrios no balanço de pagamentos, interrupção dos fluxos de financiamento externo, volatilidade das taxas de câmbio e um processo de indexação, sob diversas formas, ao dólar, que gerou um quadro de grande instabilidade macroeconômica. As tentativas de modificar esse quadro, no marco de um cenário internacional desfavorável, não tiveram êxito. É somente quando as condições se alteram -com a renegociação da dívida externa (Plano Brady), o aumento da liquidez internacional e a consolidação do ciclo de crescimento da economia norte-americana- que se viabiliza a implementação de políticas mais eficazes de controle da inflação. E isso foi o que efetivamente ocorreu, progressivamente, na quase totalidade dos países da região.
O Plano Real foi concebido com base no mesmo padrão dos programas de estabilização e ajuste aplicados nesse período. A política econômica fundamentou-se na articulação entre o aumento acelerado das importações e a absorção de recursos externos. A âncora cambial foi o eixo da política de estabilização, associada a uma política de juros elevados e à compressão da massa salarial.
Na tentativa de alinhar os preços relativos, a política de desindexação, através da URV (Unidade Real de Valor), na realidade acelerou deliberadamente a inflação, reduzindo os salários reais, mas criou condições favoráveis para a reforma monetária, que se materializou em julho de 1994 com a criação do real. De lá para cá, três linhas de política macroeconômica foram aplicadas.
A primeira, no período 1994/98, que tem importância determinante nos rumos ulteriores da política macroeconômica, apoiou-se na sobrevalorização da taxa de câmbio. Seu impacto sobre os preços internos viabilizou a redução imediata da taxa de inflação, mas produziu uma verdadeira explosão das importações. Em conseqüência, além dos efeitos desestruturadores sobre a produção nacional, a sobrevalorização cambial gerou um déficit comercial crescente com o exterior.
A abertura comercial, a sobrevalorização cambial e a política de atração de capitais externos aumentaram também o saldo negativo da conta de serviços, elevando o déficit nas transações correntes do balanço de pagamentos de US$ 1,7 bilhão em 1994 para US$ 35,2 bilhões em 1998. Esses déficits e o encarecimento do crédito interno -pela elevação da taxa de juros- produziram um rápido crescimento da dívida externa do país, principalmente do seu componente privado.
Por sua vez, a elevação da taxa de juros conduziu a uma expansão exponencial do endividamento público. A dívida mobiliária federal em mercado, que era de R$ 61,8 bilhões em 1994, saltou para R$ 323,9 bilhões em dezembro de 1998. Agregue-se que, para suster o regime de câmbio fixo sobrevalorizado, o governo assumiu parcela crescente do risco cambial dos tomadores de títulos públicos.
Ou seja, o Plano Real, embora eficaz como instrumento de estabilização dos preços internos, agravou a "restrição externa", desorganizando a economia, engessando seu crescimento e reforçando, potencialmente, o foco principal da instabilidade monetária e fiscal.
O desmoronamento anunciado dessa política se materializou em janeiro de 1999. Os efeitos da crise foram amplificados pela decisão do governo de manter a aparência de estabilidade no período pré-eleitoral, apesar da evidente insustentabilidade do regime cambial.
O recurso ao FMI (Fundo Monetário Internacional) e a adoção, em 1999, do regime de câmbio flutuante e do sistema de metas de inflação inauguraram uma nova fase na política macroeconômica, que se estenderia até 2002. Apesar da desvalorização cambial, que estimulou a progressiva redução e a posterior reversão do déficit comercial, os problemas de fundo gerados no quadriênio anterior continuaram se agravando. A vulnerabilidade da conta de capitais e o baixo nível de reservas líquidas do país pouco se modificaram. A situação fiscal piorou apesar do grande aumento da carga tributária e da política de superávits primários crescentes. A economia continuou se arrastando, tendo sua taxa média de crescimento caído para 2,1% anuais. O desemprego aberto, embora tendo desacelerado seu crescimento, acumulou aumento de 19,3%, e o rendimento real dos assalariados caiu 23%.
O presidente Lula assumiu o governo pressionado pela elevação da inflação e pelo agravamento da crise cambial desencadeada em 2002. Implantou um novo padrão de política cambial e fiscal. Elevou notavelmente as exportações -apesar da revalorização do câmbio-, obtendo superávits comerciais recordes e fazendo reverter o déficit das transações correntes do balanço de pagamentos. Estabilizou a relação dívida/PIB. Aumentou as reservas internacionais e reduziu o peso dos títulos cambiais na dívida pública. A inflação estabilizou-se e, após um período recessivo inicial, a economia retomou o crescimento, apoiada no dinamismo das exportações, nos efeitos internos do aumento da renda agrícola e na expansão do setor de bens de capital.
O país pagou um custo econômico e social muito alto pela estabilidade. Capitalizar o esforço feito pressupõe ampliar e sustentar o processo de crescimento e enfrentar os desequilíbrios sociais existentes, priorizando a geração de empregos e a universalização progressiva das políticas sociais.


Aloizio Mercadante, 50, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e líder do governo no Senado Federal.

Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
mercadante@mercadante.com.br


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