São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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ANÁLISE

Inflação ameaça a recuperação

ALAN GREENSPAN
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

A ALTA nos preços mundiais das ações entre o começo de março e a metade de junho aparentemente é a causa primária da virada surpreendentemente positiva no ambiente econômico.
O valor acionário de US$ 12 trilhões criado nesse período reforçou significativamente o capital que serve como proteção e lastro aos títulos de dívida emitidos pelas companhias. As dívidas empresariais, em consequência, tiveram melhora em sua classificação, e os rendimentos dos papeis puderam cair. Empresas que estavam sufocadas por falta de capital colocaram ações e títulos de dívida no mercado em montantes consideráveis nos últimos meses. Os temores do mercado quanto à insolvência bancária foram atenuados.
Estamos vendo o começo de uma recuperação econômica prolongada ou uma falsa aurora? Existem argumentos respeitáveis quanto às duas interpretações. Conjecturei, cerca de um ano atrás, que a crise se encerraria quando os preços dos imóveis residenciais se estabilizassem nos EUA. E continuo a acreditar nisso.
Esses preços determinam em larga medida o valor patrimonial das casas -a caução final para os US$ 11 trilhões em dívidas hipotecárias existentes nos Estados Unidos, porção significativa das quais detidas por investidores internacionais, em forma de títulos lastreados por ativos. O que segura os preços dos imóveis no momento é o grande estoque de casas vazias e à venda. Graças à queda recente e acentuada no número de imóveis residenciais construídos, esse estoque excedente está sendo liquidado em ritmo acelerado, o que sugere que os preços poderiam começar a se estabilizar nos próximos meses -ainda que talvez registrem uma queda em 2010.
Além disso, os grandes prejuízos até agora não reconhecidos nos bancos dos EUA precisarão ser cobertos. Ou uma estabilização nos preços das casas ou uma nova alta no capital acionário recém-criado e disponível para os intermediários financeiros norte-americanos serviria para remover esse obstáculo à recuperação.

Nas Bolsas
Os mercados de ações mundiais se recuperaram tanto e tão rápido neste ano que é difícil imaginar que possam continuar avançando em ritmo próximo ao registrado recentemente. Mas e se, depois de uma correção, eles voltarem a subir inexoravelmente? Isso reforçaria os balanços mundiais com nova elevação na capitalização acionária e forneceria aos bancos capital novo, o que permitiria que reforçassem seus empréstimos. Preços mais altos para as ações também resultariam em alta no patrimônio domiciliar líquido e no consumo, e a ascensão no valor de mercado de ativos empresariais existentes (representados pelos preços das ações), com relação ao seu custo de substituição, promoveria novos investimentos de capital.
Uma recuperação prolongada nos preços mundiais das ações ajudaria, dessa maneira, a remover as forças deflacionárias que continuam a rondar a economia mundial.
Reconheço que confiro aos preços das ações um papel econômico muito mais importante do que a sabedoria convencional dispõe. Da minha perspectiva, elas não apenas são um dos mais importantes indicadores da atividade mundial de negócios, mas um fator crucial de contribuição para esses setores, operando primordialmente por meio dos balanços. Minha hipótese quanto a isso poderá ser testada no próximo ano. Caso as ações recuem aos pontos baixos que detinham no início do segundo trimestre, ou mais ainda, minha expectativa seria que os "brotos verdejantes" avistados nas últimas semanas fenecessem.
Os preços das ações, evidentemente, são afetados pelas oscilações comuns da economia.
Mas, como afirmei em março, um dos propulsores significativos dos preços das ações é a propensão humana inata a oscilar da euforia ao medo, a qual, embora pesadamente influenciada pelos acontecimentos econômicos, tem vida própria.
Na minha experiência, episódios como esse não são apenas simples previsões da atividade empresarial futura, mas causas importantes dela.
Para que o cenário benévolo descrito acima possa se confirmar, é preciso que os perigos de deflação, em curto prazo, e de inflação, em longo prazo, sejam enfrentados e removidos.

Grave desafio
A capacidade excedente de produção contém temporariamente as pressões mundiais de preços. Mas considero que a inflação será o desafio mais grave no futuro. Caso as pressões políticas impeçam os bancos centrais de retomar o controle sobre seus balanços inchados em tempo oportuno, a análise estatística sugere que poderá surgir inflação por volta de 2012; ou mais cedo, caso os mercados antecipem um período prolongado de alta na base monetária.
A inflação de preços anualizada dos EUA apresenta correlação significativa (ainda que com defasagem de três anos e meio) com a alteração anual na relação entre a base monetária e a capacidade produtiva.
A inflação representará preocupação especial durante os próximos dez anos, dada a iminente avalanche de títulos de dívida do governo que se despejará sobre os mercados financeiros mundiais. A necessidade de financiar déficits fiscais muito elevados ao longo dos próximos anos pode resultar em pressão política sobre os bancos centrais no sentido de que imprimam o dinheiro requerido para a compra de boa parte dos títulos de dívida que virão a emitir.
O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), quando perceber que o nível de desemprego está a ponto de começar a cair, presumivelmente começará a permitir que seus ativos de curto prazo se esgotem. Ou venderá os títulos públicos e privados e os papéis lastreados por ativos recentemente adquiridos ou, caso isso se prove perturbador demais para os mercados, emitirá (com aprovação do Congresso) títulos de dívida do Fed para esterilizar ou contrabalançar aquilo que reste da imensa expansão da base monetária.
Assim, as taxas de juros subiriam bem antes da restauração do pleno emprego, uma política que, no passado, não era vista com bons olhos pelo Congresso dos EUA. Além disso, a não ser que os compromissos de gastos do governo norte-americano sejam adiados ou reduzidos, é provável que a taxa real de inflação cresça ainda mais, devido à necessidade de bancar o déficit cada vez mais largo.
Os compromissos de gastos que o governo assumiu para a próxima década são assustadores. Além disso, a possibilidade de erro é especialmente grande devido às incertezas nas projeções do programa de saúde Medicare. Historicamente, os Estados Unidos, a fim de limitar a probabilidade de inflação destrutiva, sempre confiaram em uma margem considerável de proteção entre nível de endividamento do governo federal e medidas amplas da capacidade total de captação do país.

Perto do limite
As projeções atuais sobre a emissão de títulos de dívida pública, caso concretizadas, certamente deixariam os EUA precariamente próximos do limite máximo de captação nacional.
O medo de uma alta futura na inflação em breve começará a ser incorporado na formação dos preços dos títulos de longo prazo do governo dos Estados Unidos ou nas taxas de juros.
Caso as taxas de juros de longo prazo se elevem cronicamente, os preços das ações continuarão sufocados, se a história serve como indicador.
Os Estados Unidos enfrentam uma escolha entre cortar seus déficits orçamentários e base monetária tão logo os riscos atuais de deflação se dissipem ou criar o cenário para uma possível alta da inflação.
Mesmo na ausência de uma ameaça inflacionária, existe outro potencial perigo inerente na atual política fiscal norte-americana: um aumento considerável no uso da dívida pública como instrumento de financiamento da economia dos Estados Unidos.
Um curso como esse para a política fiscal é uma receita para a alocação política de capital e para a debilitação do processo de concorrência no setor privado, que é essencial para promover uma melhora nos padrões de vida. A reputação desse paradigma foi severamente maculada pelos acontecimentos recentes. Melhoras na regulamentação e na fiscalização financeira, especialmente na área de requisitos de capitalização, são necessárias.
No entanto, a melhor chance para o crescimento mundial é que continuemos a confiar em forças privadas de mercado para alocar capital e outros recursos. A alternativa, a alocação política de recursos, já foi experimentada e fracassou.


ALAN GREENSPAN foi presidente do Federal Reserve dos EUA.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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