São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005 |
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ENTREVISTA
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Para o economista, vocação de crescimento sem o sacrifício de poupar para o futuro leva país às taxas elevadas
Falta poupança para cortar juro, diz Giannetti
GUSTAVO IOCHPE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Eduardo Giannetti da Fonseca é
ave rara no panteão da intelectualidade brasileira. Com credenciais
acadêmicas exemplares, Ph.D. em
economia em Cambridge, onde
também foi contratado como pesquisador, atualmente professor
do Ibmec depois de longa passagem pela USP, ele vai contra a tendência de especialização.
Se um especialista é alguém que
sabe cada vez mais sobre cada vez
menos, Giannetti tenta saber cada
vez mais sobre cada vez mais. O
economista procura questões que
devam ser trabalhadas por meio
do que ele chama de "corte transversal" de saberes.
Assim, ainda que seu mais recente livro, "O Valor do Amanhã", (Cia. das Letras, 328 pp,
R$ 44) seja ostensivamente vendido como uma discussão sobre juros, na verdade o tomo é um passeio multidisciplinar sobre o tempo e o fundamental impacto sobre a experiência humana de dois
fatos associados a ele: a certeza de
que vamos morrer e a incerteza
sobre quando a morte virá.
Sobre esse pano de fundo, a
obra usa da psicologia evolutiva à
filosofia para instrumentalizar o
leitor na sua reflexão. Ao final,
quase que despercebidamente,
Giannetti encaixa sua visão arejada e iconoclasta sobre o porquê de
pagarmos os juros que pagamos
sem, nesse caminho, mencionar
uma única vez a palavra "Brasil"
ou sacar do economês. Leia a seguir entrevista.
Folha - Você acha que a sociedade
brasileira tem a vocação da riqueza, mas não do trabalho, como você
parafraseia Machado de Assis?
Eduardo Giannetti da Fonseca - O
Brasil tem a vocação do crescimento, mas sem vocação da poupança. Quando tenta fazer o crescimento sem poupança, dois tipos de atalho podem ser buscados. Um é a inflação e o outro, a
poupança externa. Esses dois atalhos têm limites, geram crises de
estabilização ou de balanço de pagamentos. Se você tem a vocação
do crescimento sem vocação da
poupança e não quer incorrer na
inflação nem na crise do balanço
de pagamentos, os juros têm de
ser muito elevados, a economia
tem de ficar num equilíbrio muito
tenso e a demanda tem que ficar
restrita por meio de um juro primário cavalar. É o Brasil dos últimos 15 anos.
Desde antes do Real o juro primário no Brasil é absurdamente
alto. Isso começou logo após a
derrocada do Plano Collor, daquele confisco da poupança. Na
gestão Marcílio Marques Moreira,
o juro primário real no Brasil atingiu patamares extremamente elevados e nunca mais caiu.
Folha - E isso é a sociedade brasileira atual pagando pela impaciência dos seus antepassados ou você
acha uma tendência ainda intrínseca à sociedade brasileira?
Giannetti - Isso é uma característica comportamental e institucional nossa hoje. Temos um comportamento inconsistente, de um
país que almeja crescimento elevado, mas não age de acordo, isto
é, não é capaz de transferir recurso do presente para o futuro, uma
poupança a longo prazo. A psicologia do poupador brasileiro ainda é muito aquela descrita pela
frase "a festa tá boa, mas é bom ficar perto da porta". Ninguém
quer ficar em poupança de longo
prazo denominada em real.
Folha - Mas temos uma conquista
da sociedade, a rejeição à inflação.
O que você sugere é que não houve
a contrapartida, que seria a rejeição do imediatismo. Como é que a
gente sairia desse dilema?
Giannetti - Se a sociedade brasileira estivesse satisfeita em crescer
3% ao ano, estaria tudo resolvido.
Vamos ter inflação baixa, crescimento baixo, estabilidade macroeconômica. Mas a sociedade
não se contenta em crescer 3% ao
ano, com razão.
Mas como é que você passa de
3% de crescimento para 6%, 7%
de crescimento consistente no
tempo? Você tem que ter uma taxa de poupança e de investimento
muito maior. Isso implica sacrifícios. O Brasil reluta muito em fazer esses sacrifícios de pouco consumo corrente para transferir recursos lá para a frente, para formar capital. Não é só capital físico,
é capital humano, talvez e principalmente.
Folha - Você escreve que a orientação ao futuro de uma sociedade é
resultante do grau de impaciência
dos indivíduos e da oportunidade
de investimento com que ela depara. Fica implícito que você acredita
que no Brasil o primeiro fator é o
fulcro do problema, não?
Giannetti - É. Tem que haver
uma consistência entre o grau de
paciência da sociedade e o desejo
de investimento e a capacidade de
investimento que ela tem. Você
não pode ter ao mesmo tempo
uma enorme impaciência e uma
enorme capacidade de investir. Isso
gera desequilíbrio. O que falta
no Brasil é que essas duas forças encontrem uma certa paridade, uma
certa consistência
interna.
Folha - Quanto
você diria que há
de cultura, história
e condições materiais objetivas para
explicar essa característica?
Giannetti - Essas
coisas estão tão
interligadas, tão
sobrepostas, misturam-se de tantas maneiras, acho
que não dá para
separar. Há aspectos culturais, aspectos históricos.
A questão institucional é importante também. O
que dá para mudar no curto prazo
são as instituições.
Folha - É o mais simples.
Giannetti - É o mais simples. O
comportamento vai depender
muito de educação, e não é só
educação formal, é família, também. O Brasil tem uma deficiência muito séria de ambiente familiar, na formação de capital humano, o que é ruim do ponto de
vista econômico. Mas em outras
dimensões da vida tem também o
seu charme. A disposição alegre
do brasileiro, a sua capacidade de
desfrutar o momento, sem pensar
no amanhã, que é uma coisa característica da nossa convivência,
está muito ligado a isso.
Folha - Nós poderemos ser uma
Roma tropical?
Giannetti - É, diria um país ocidental, próspero, tecnologicamente avançado, com menor desigualdade, com população educada, mas sem perder atributos
pré-modernos, de espontaneidade, de alegria, o doce sentimento
da existência, que vai se esgarçando à medida que a lógica, a tecnologia, a competição impõem padrões de comportamento e uma
rigidez cada vez maior na mente.
Folha - Essas fantasias pré-modernas permitem ao brasileiro conviver com esses índices de desigualdade, injustiça, violência?
Giannetti - Têm um lado perverso, permitem se adaptar e encontrar a alegria de
viver mesmo em
circunstâncias
objetivas muito
precárias. É o lado
perverso dessa
mágica brasileira.
Por um lado, é
bom, mesmo na
adversidade máxima você manteve a chama da
vontade, da alegria de viver. Agora, se você se
adaptou a isso,
você está resignado, você não vai
lutar, não vai se
organizar, não vai
mudar esse quadro objetivo.
Folha - Em termos culturais, há
nos EUA essa mesma impaciência e
imediatismo do
Brasil?
Giannetti - Aí
depende muito
do estágio de desenvolvimento do
país. No final do século 19, quando os EUA cresciam a 9% ou 10%
ao ano, consistentemente, eles
poupavam mais de 30% da renda.
Hoje, já é um país maduro, muito
diferente. Os EUA crescem a 2%,
3% ao ano, está ótimo. Para o Brasil, crescer 2% ao ano é terrível.
Não podemos nos resignar a isso.
Nós ainda não fizemos essa acumulação de um estoque de capital
que nos permita não concentrar
esforços em um crescimento alto.
Folha - Daí ser um pouco ridícula
essa tendência brasileira de copiar
modelos econômicos que são usados nos EUA e em outros países desenvolvidos hoje, e não quando
eles se desenvolviam...
Giannetti - Os países com os
quais nós devemos nos comparar
são o Chile, a Coréia do Sul, a China, a Índia. Que estão poupando
mais que 30% do PIB, investindo
40%, como no caso da China.
Folha - Você menciona no livro
que a Coréia, no início do século 20,
era um país parecido com o Brasil
atual. Como se deu a transição coreana? O que podemos aprender?
Giannetti - O fundamental é capital humano. Eles fizeram um esforço magnífico. Primeiro, estabilizaram a população muito antes
do que nós. O crescimento demográfico lá já nos anos 60, 70 estava
resolvido. Chegamos agora nisso.
No Brasil, triplicamos a população em 50 anos, na segunda metade do século 19. Os
efeitos dessa extravagância demográfica vão ficar conosco por
muitas gerações.
Um país que triplica a sua população de 50 milhões para 150 milhões de habitantes em 45 anos vai
ter um problemão
na frente.
O governo coreano, sabiamente, concentrou o
gasto público educacional em ensino fundamental,
ao contrário do
nosso, que ainda
gasta 20% do total
do Orçamento em
educação superior. Quem chega
ao ensino superior normalmente
tem condições de
pagar por ele.
Folha - Você escreve que a prática
antiga de servidão ou mutilação
por inadimplência foi abolida por
ser basicamente antiéticas. No Brasil de hoje, essa idéia de que há direitos humanos superiores ao do
recebimento de dívida parece meio
herética, não?
Giannetti - Nós vamos ter problema nessa direção em breve. Esse crédito consignado para o idoso vai gerar dilemas terríveis. Na
hora em que começar a ser cobrado o juro, que é espantosamente
alto para um crédito que quase
não tem risco, vai ter velho no
Brasil na seguinte situação: vai faltar dinheiro para comprar remédio. Esse negócio vai para a Justiça. Vai preservar o direito do banco de morder na folha do INSS ou
vai preservar o direito de comprar
remédio para não morrer?
Folha - E do ponto de vista macro,
a criação de superávits e geração
de contingenciamentos orçamentários, é parte dessa ótica?
Giannetti - Aí é uma questão
bem diferente. O que me deixa
um pouco inquieto é ver como a
mídia descreve o superávit primário como o dinheiro economizado pelo governo para pagar o juro. Isso é uma bobagem! Não é isso. Superávit primário é o dinheiro economizado pelo governo para impedir que o seu endividamento fique descontrolado. Você
pode descrever o superávit primário como o dinheiro economizado pelo governo para pagar
aposentadoria.
Você pode descrever o superávit
primário como
sendo o dinheiro
economizado para pagar qualquer
coisa. O importante é que o governo esteja numa situação em
que a sua dívida
está controlada.
Folha - O exemplo da Argentina,
de um "default"
seguido de forte
crescimento, atiça
a percepção de
que o descontrole
da dívida não é um
problema?
Giannetti - Um
país que perdeu
16% do PIB em
um ano, é óbvio
que vai crescer
depois. Agora, se
alguém imagina
que a Argentina é
exemplo, veja a história da Argentina no século 19. Não há outro
país no mundo que tenha sofrido
uma decadência e uma perda de
qualidade de vida e de renda tão
pronunciada. Se calote fosse o segredo do sucesso, a Argentina seria o país mais próspero do planeta! É um país desgraçado economicamente. É um país que não investe, que não tem futuro. É muita
miopia achar que calote resolve.
Folha - Há alguma evidência empírica para a idéia da impaciência e
propensão ao imediatismo do brasileiro? O que dizer aos que vêem
na alta taxa de juros uma captura
do Estado por elites rentistas?
Giannetti - Diversas. A baixa
poupança doméstica, hoje em
torno de 19% do PIB, é uma delas.
Outra evidência são os juros no
mercado livre de crédito -medida da impaciência agregada de
uma sociedade. Nos últimos cinco anos, os juros das operações de
crédito da pessoa física oscilaram
entre 140% e 180% ao ano (cheque
especial); 70% e 100% ao ano (crédito pessoal) e 40% a 60% ao ano
(aquisição de bens).
A melhor resposta aos que vêem
nos juros primários muito elevados (são já 15 anos desde 1991)
uma conspiração das elites é convidá-los a um pequeno experimento mental: o BC reduz a taxa a
6% real. O que ocorre em seguida?
Folha - Você acha que essa linha
de comportamento é uma característica difusa da sociedade brasileira ou há, digamos, picos de responsabilidade no governo, nas elites e
em alguns setores sociais?
Giannetti - Meu ponto básico é
que os governantes não são tão
diferentes do resto da sociedade,
como em muitas vezes nós gostamos de acreditar. Nós os elegemos e eles nos representam porque nós os elegemos. A idéia de
que o problema no Brasil são os
políticos é totalmente furada.
Lembro-me da época do impeachment do Collor, eu dava
curso na USP. Meus alunos foram
às ruas com caras pintadas exigindo ética na política e o impeachment do presidente. Quando chegou a hora da prova, esses mesmos alunos começaram a colar
desavergonhadamente. Será que
as pessoas não ligam as pontas?
A pessoa que está colando na
prova da faculdade, quando tiver
a chance em Brasília, vai meter a
mão no Orçamento e vai encontrar alguma racionalização para
justificar para si mesmo o que está
fazendo sem se sentir muito mal.
Folha - Como é que se passa de
um comportamento impaciente
para outro paciente, previdente?
Giannetti - Não tem passe de mágica, isso é um processo lento, de
amadurecimento. Temos de ter a
sabedoria de aprender com as nações mais desenvolvidas, mas não
imitá-las servilmente. Temos que
ter condições de conseguir incorporar do Ocidente civilizado o
que ele tem a oferecer: saneamento, saúde pública, educação fundamental, uma certa civilidade na
convivência. Mas também lembrar que essa promessa iluminista
de felicidade, pela ciência e tecnologia, é muito limitada. Todas as
pesquisas hoje mostram que esse
caminho tem limites. A realização
humana não pode ser inteiramente centrada no consumo, na
renda, na segurança. Jamais.
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