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OPINIÃO ECONÔMICA
Moeda sem povo
RUBENS RICUPERO
Joaquim Nabuco dizia que um
país de escravos como o Brasil era
como uma nação sem povo, pois
um povo só podia ser a comunidade dos cidadãos, dos homens livres.
O mesmo vale para a moeda. Ela
existe apenas quando atrás dela
há um povo de cidadãos, isto é,
homens e mulheres conscientes,
responsáveis, participantes da vida política do país.
Os fatalistas da globalização, os
resignados à dolarização são, no
fundo, os mesmos que nunca acreditaram no povo brasileiro, na
sua capacidade de sacrifício para
resolver nossos problemas. Para
isso, esse povo exige, é verdade,
ser tratado de forma adulta, com
respeito a sua inteligência e dignidade, pronto em tal caso a pôr seu
entusiasmo, suas reservas de
energia, de generosidade, a serviço da construção de uma sociedade justa e integrada, se para tanto
for convocado.
Os que acham tudo isso bobagem e duvidam da capacidade
brasileira (e portanto da própria)
de governar a economia acham
naturalmente que a moeda nacional é luxo a que não temos direito.
Daí a abdicar da soberania é um
passo que alguns dariam de coração leve. Só surpreende que falem
em dolarização. Afinal, a União
Européia é nosso primeiro parceiro comercial. O mais lógico seria
cancelar o Sete de Setembro do calendário e do nome das ruas, denunciar o tratado de reconhecimento da Independência, de 1825,
e reclamar nossa reincorporação
a Portugal e Algarves e automático ingresso à União Européia.
Não só gozaríamos das delícias do
euro como realizaríamos o sonho
de Matias de Albuquerque no
"Fado Tropical": o Brasil viraria
enfim um imenso Portugal...
A verdade é que, se a moeda é
expressão da soberania e esta se
origina no povo, a moeda, para
ser autêntica, deve encarnar as
aspirações e os valores do povo.
Por isso, toda grande moeda encerra o ideal de um grande povo: o
dólar, o sonho americano de riqueza e prosperidade para todos;
o euro, o mito criador da unidade
européia; o marco, o orgulho do
milagre alemão do pós-guerra; o
franco suíço, a estabilidade de um
pequeno oásis de paz e sabedoria
num continente dilacerado por
guerras.
Qual poderia ser, nessa prestigiosa companhia, o projeto do
real? Só vejo um, o de superar cinco séculos de miséria, escravidão,
latifúndio, desigualdade monstruosa; de edificar uma sociedade
fraterna e solidária, ainda que
modesta pelos padrões materiais
dos países abastados, mas rica em
qualidade humana; que não mais
assassine meninos de dez anos
dormindo nas escadas de igrejas
para se proteger do frio, que deixe
de prostituir meninas apenas púberes, de massacrar índios e trabalhadores rurais, de trucidar
prisioneiros empilhados em prisões infectas e gente humilde, pacífica, só pelo crime de morar em
Vigário Geral.
O nosso povo entende esse ideal
e está disposto a qualquer sacrifício para torná-lo realidade, até o
que for necessário para equilibrar
as finanças e gerar a poupança e o
investimento para criar empregos. Não digo isso por fantasia ou
idealismo, mas pelo "saber só de
experiências feito". Vivi, de fato,
essa experiência, e ela foi a mais
marcante e profunda de minha
vida, quando lançamos o real em
1º de julho de 1994.
O sucesso fulminante da moeda
não se deveu tanto à engenhosidade do plano (houve outros similares no passado) nem à competência e dedicação de todos,
presidente, ministros e funcionários que contribuíram ao esforço
conjunto. Foi, isso sim, produto
da fé e da maturidade da população, que compreendeu o valor da
estabilidade para melhorar a vida
dos pobres e vulneráveis, para
consolidar o pedestal no qual se
deveria elevar um projeto de país
que ficou por terminar.
Junto com meus companheiros,
viajamos na época aos quatro
cantos do Brasil e só não fomos a
mais lugares porque não houve
tempo. Visitamos mercados do
Ceasa, feiras populares do Nordeste, dialogamos com empresários e sindicatos operários, mobilizando as pessoas para engajá-las na defesa dos consumidores.
Não tivemos nisso nenhum mérito especial e apenas cumprimos, e
imperfeitamente, nosso dever como os "servidores inúteis" do
evangelho, como servidores públicos obrigados a informar a população, a apresentar-lhe em linguagem simples e clara, sem economês, na "língua certa do povo",
as razões do que fazíamos. O povo
acreditou e fez o resto, consumindo com moderação, vigiando os
preços, evitando compras a crédito com juros ruinosos, pressionando contra excessos e abusos.
Em outras palavras, criando as
condições psicológicas que constituem mais de 50% da economia.
Infelizmente, houve depois quem
acreditasse que era mérito próprio o que na verdade era mérito
do povo. Pensou-se que havia
uma espécie de poder mágico em
fórmulas econômicas como a valorização da moeda e foi a degringolada que se viu, como todo cortejo inevitável de pacotes, surpresas e outros golpes destruidores da
confiança.
Agora que a expectativa de volta da inflação está a fazer subir à
tona o pior de nós, as remarcações
escorchantes, a revoltante explosão de preços dos serviços que não
sofrem a competição dos importados, honorários médicos, dentistas, de profissionais etc., a ameaça de ressuscitar a indexação mediante o dólar, é tempo de voltar à
inspiração original e de reagir por
meio da mobilização popular. Os
responsáveis devem reconhecer os
erros com humildade e pedir a
ajuda do povo. A convocação das
pessoas na qualidade de cidadãos, de consumidores maduros e
de vigilantes há de liberar o melhor que existe em nós mesmos: a
disposição de subordinar o egoísmo individual ao interesse coletivo, o sentimento de solidariedade,
de participação em um projeto comum, única força capaz de transformar a massa amorfa, desesperada, em povo organizado para a
esperança e para a ação, única
possibilidade de salvar o real e
dar à moeda o povo que lhe faz
falta.
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos domingos nesta coluna.
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