São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA
Moeda sem povo

RUBENS RICUPERO
Joaquim Nabuco dizia que um país de escravos como o Brasil era como uma nação sem povo, pois um povo só podia ser a comunidade dos cidadãos, dos homens livres.
O mesmo vale para a moeda. Ela existe apenas quando atrás dela há um povo de cidadãos, isto é, homens e mulheres conscientes, responsáveis, participantes da vida política do país.
Os fatalistas da globalização, os resignados à dolarização são, no fundo, os mesmos que nunca acreditaram no povo brasileiro, na sua capacidade de sacrifício para resolver nossos problemas. Para isso, esse povo exige, é verdade, ser tratado de forma adulta, com respeito a sua inteligência e dignidade, pronto em tal caso a pôr seu entusiasmo, suas reservas de energia, de generosidade, a serviço da construção de uma sociedade justa e integrada, se para tanto for convocado.
Os que acham tudo isso bobagem e duvidam da capacidade brasileira (e portanto da própria) de governar a economia acham naturalmente que a moeda nacional é luxo a que não temos direito. Daí a abdicar da soberania é um passo que alguns dariam de coração leve. Só surpreende que falem em dolarização. Afinal, a União Européia é nosso primeiro parceiro comercial. O mais lógico seria cancelar o Sete de Setembro do calendário e do nome das ruas, denunciar o tratado de reconhecimento da Independência, de 1825, e reclamar nossa reincorporação a Portugal e Algarves e automático ingresso à União Européia. Não só gozaríamos das delícias do euro como realizaríamos o sonho de Matias de Albuquerque no "Fado Tropical": o Brasil viraria enfim um imenso Portugal...
A verdade é que, se a moeda é expressão da soberania e esta se origina no povo, a moeda, para ser autêntica, deve encarnar as aspirações e os valores do povo. Por isso, toda grande moeda encerra o ideal de um grande povo: o dólar, o sonho americano de riqueza e prosperidade para todos; o euro, o mito criador da unidade européia; o marco, o orgulho do milagre alemão do pós-guerra; o franco suíço, a estabilidade de um pequeno oásis de paz e sabedoria num continente dilacerado por guerras.
Qual poderia ser, nessa prestigiosa companhia, o projeto do real? Só vejo um, o de superar cinco séculos de miséria, escravidão, latifúndio, desigualdade monstruosa; de edificar uma sociedade fraterna e solidária, ainda que modesta pelos padrões materiais dos países abastados, mas rica em qualidade humana; que não mais assassine meninos de dez anos dormindo nas escadas de igrejas para se proteger do frio, que deixe de prostituir meninas apenas púberes, de massacrar índios e trabalhadores rurais, de trucidar prisioneiros empilhados em prisões infectas e gente humilde, pacífica, só pelo crime de morar em Vigário Geral.
O nosso povo entende esse ideal e está disposto a qualquer sacrifício para torná-lo realidade, até o que for necessário para equilibrar as finanças e gerar a poupança e o investimento para criar empregos. Não digo isso por fantasia ou idealismo, mas pelo "saber só de experiências feito". Vivi, de fato, essa experiência, e ela foi a mais marcante e profunda de minha vida, quando lançamos o real em 1º de julho de 1994.
O sucesso fulminante da moeda não se deveu tanto à engenhosidade do plano (houve outros similares no passado) nem à competência e dedicação de todos, presidente, ministros e funcionários que contribuíram ao esforço conjunto. Foi, isso sim, produto da fé e da maturidade da população, que compreendeu o valor da estabilidade para melhorar a vida dos pobres e vulneráveis, para consolidar o pedestal no qual se deveria elevar um projeto de país que ficou por terminar.
Junto com meus companheiros, viajamos na época aos quatro cantos do Brasil e só não fomos a mais lugares porque não houve tempo. Visitamos mercados do Ceasa, feiras populares do Nordeste, dialogamos com empresários e sindicatos operários, mobilizando as pessoas para engajá-las na defesa dos consumidores. Não tivemos nisso nenhum mérito especial e apenas cumprimos, e imperfeitamente, nosso dever como os "servidores inúteis" do evangelho, como servidores públicos obrigados a informar a população, a apresentar-lhe em linguagem simples e clara, sem economês, na "língua certa do povo", as razões do que fazíamos. O povo acreditou e fez o resto, consumindo com moderação, vigiando os preços, evitando compras a crédito com juros ruinosos, pressionando contra excessos e abusos. Em outras palavras, criando as condições psicológicas que constituem mais de 50% da economia. Infelizmente, houve depois quem acreditasse que era mérito próprio o que na verdade era mérito do povo. Pensou-se que havia uma espécie de poder mágico em fórmulas econômicas como a valorização da moeda e foi a degringolada que se viu, como todo cortejo inevitável de pacotes, surpresas e outros golpes destruidores da confiança.
Agora que a expectativa de volta da inflação está a fazer subir à tona o pior de nós, as remarcações escorchantes, a revoltante explosão de preços dos serviços que não sofrem a competição dos importados, honorários médicos, dentistas, de profissionais etc., a ameaça de ressuscitar a indexação mediante o dólar, é tempo de voltar à inspiração original e de reagir por meio da mobilização popular. Os responsáveis devem reconhecer os erros com humildade e pedir a ajuda do povo. A convocação das pessoas na qualidade de cidadãos, de consumidores maduros e de vigilantes há de liberar o melhor que existe em nós mesmos: a disposição de subordinar o egoísmo individual ao interesse coletivo, o sentimento de solidariedade, de participação em um projeto comum, única força capaz de transformar a massa amorfa, desesperada, em povo organizado para a esperança e para a ação, única possibilidade de salvar o real e dar à moeda o povo que lhe faz falta.


Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos domingos nesta coluna.



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