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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma questão de tabuada
RUBENS RICUPERO
"Qualquer coisa que se
ganhe torna-se insignificante quando se tem de dividir
por 1,3 bilhão; uma dificuldade,
por mais trivial que seja, vira bicho de sete cabeças depois de multiplicada pela mesma cifra." Foi
com essa fórmula que o primeiro-ministro da China resumiu o dilema do seu país: uma simples conta de divisão e de multiplicação,
uma questão de tabuada.
Cheguei a Xangai após alguns
dias em Pequim, creio que minha
quinta visita em poucos anos. A
cada vez, constato a verdade do
que me comentou um colega: todos os livros, estudos e análises da
China, por mais frescos e atualizados, estão sempre atrasados de
uns dois anos. É como se sofressem de uma espécie de "jet lag"
intelectual.
Fora dos pontos de referência
imutáveis -a Cidade Proibida, a
praça Tiananmen- mal se consegue reconhecer Pequim, onde o
que não é novo em folha está em
demolição ou construção. Não faz
muito, Xangai concentrava 16%
do total mundial de guindastes e
maquinaria de construção pesada. Depois, tiveram de esmorecer
um pouco porque o porto está
afundando a um centímetro por
ano, devido ao lençol subterrâneo
e ao peso insuportável de arranha-céus maciços.
Essa é uma boa imagem do que
acontece com a economia. Após
crescer por mais de 20 anos à média anual de 9,3%, o governo
achou que era hora de pisar no
freio para dar uma rearrumada
geral. As epidemias recentes, a poluição insuportável, o agravamento das disparidades mostraram que era preciso equilibrar
um pouco o vertiginoso ritmo
econômico em relação ao retardamento em matéria social e ambiental. Não se impressionem,
contudo, com a anunciada desaceleração: ela visa apenas a passar de um galope desenfreado de
9% a um trote acelerado de 7%. O
bastante para tirar o sono de um
povo viciado em crescimento,
mas que, para nós, ex-desenvolvimentistas aposentados e envelhecidos, parece rematada loucura,
sonho só possível em nação jovem
e imatura de 5.000 anos.
Mesmo assim, foi mantida a
meta de chegar a 2020 com a renda per capita multiplicada por
quatro, o que dará US$ 3.000 por
pessoa ou um PIB de mais de US$
4 trilhões. Se hoje a China já se
converteu na maior fonte de aumento da demanda mundial de
importações e é em grande parte
responsável pela recuperação das
cotações de minérios (como a nossa hematita), metais e outras matérias-primas, imagine o que não
será então! O principal "think-tank" do governo chinês estima
que, em pouco mais de três anos,
a China chegará a importar US$ 1
trilhão, o que lhe garante o 3º lugar entre os maiores compradores, logo em seguida aos EUA e à
Alemanha, já tendo ultrapassado
o Japão. Somente isso bastaria
para demonstrar por que a China
tem de ser uma das principais
prioridades do comércio exterior
brasileiro.
O que mais fascina é assistir a
essa reviravolta no país que, durante boa parte de sua história,
foi o exemplo por excelência da
opção preferencial pelo isolamento em relação ao mundo, de que
se tornou símbolo a falida construção da Grande Muralha. Não
que faltassem boas razões ao Império do Meio para desconfiar
mais tarde das intenções da Companhia das Índias inglesa e de seu
pioneiro papel no comércio do
ópio, antecipando o cartel de Medellín na promoção do narcotráfico, sob a proteção das canhoneiras de Sua Majestade. Todos os
intentos de defesa pelo isolamento falharam: a Muralha, a Guerra
do Ópio, a Rebelião dos Boxers, a
Revolução Cultural.
Os líderes chineses finalmente
capitularam. Já que não podiam
defender-se do mundo exterior, o
melhor era juntar-se a ele, colocando-o a serviço do desenvolvimento chinês por meio dos investimentos das transnacionais e da
exportação aos mercados alheios.
Resultado: em 2003, o comércio
exterior correspondeu a 60% do
PIB, porcentagem sem precedentes em país de dimensão continental e gigantesco mercado interno.
Nem por isso a China descuidou
do desenvolvimento humano. A
pobreza absoluta, sobretudo na
zona rural, foi reduzida de 85 milhões a 30 milhões de pessoas (menos de 625 yuans diários). Vim a
Pequim para representar o secretário-geral da ONU, Kofi Annan,
na conferência sobre o desempenho chinês no atingimento das
chamadas Metas do Milênio. Pude assim verificar que algumas
das metas, tais como a de educação primária, foram alcançadas
13 anos antes da data limite
(2015). É verdade que persistem
desafios colossais em termos de
combate à Aids e outras doenças,
de aumento da desigualdade
(muito relativa em comparação
ao Brasil), de degradação ambiental. Nos próximos 17 anos, a
China planeja fazer mudar para
as zonas urbanas 500 milhões dos
900 milhões de habitantes do
campo. O que isso representa em
criação de empregos, em investimentos em casas, sistema de água
e esgoto, eletricidade, transporte
etc. é pesadelo rocambolesco para
qualquer ministro de infra-estrutura.
Os chineses, porém, não se assustam. Conforme me disse o
principal representante da ONU
aqui, cada pessoa que se encontra
está empenhada no seu auto-aperfeiçoamento. Quem não tem
estudo superior quer fazer a universidade. Quem é bacharel quer
ser mestre, doutor, professor. É até
cansativo, comentou-me, ninguém relaxa, todos sabem que o
desenvolvimento é um processo
contínuo de aprendizagem, que
começa na esfera individual e
contagia a sociedade inteira.
É de Napoleão a frase célebre:
"A China é um gigante adormecido; melhor deixá-lo dormir porque, quando acordar, há de espantar o mundo". Não sei em que
círculo do inferno estará hoje o
profético corso. Lá onde estiver,
haverá talvez de perceber que
existia outro gigante pela própria
natureza, plataforma de onde
partiram os portugueses a fim de
arrebatar-lhe Caiena, como reação de picuinha segura, do outro
lado do Atlântico, à invasão francesa do território metropolitano.
Bonaparte jamais imaginou que,
anos mais tarde, ao chegar à Independência, um outro gigante se
dotaria de hino que era já um
programa: "Deitado eternamente
em berço esplêndido".
O colosso chinês só acordou devido às fomes, à guerra civil, à humilhação estrangeira, aos massacres nipônicos. O que será necessário para finalmente despertar o
outro?
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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