São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma questão de tabuada

RUBENS RICUPERO

"Qualquer coisa que se ganhe torna-se insignificante quando se tem de dividir por 1,3 bilhão; uma dificuldade, por mais trivial que seja, vira bicho de sete cabeças depois de multiplicada pela mesma cifra." Foi com essa fórmula que o primeiro-ministro da China resumiu o dilema do seu país: uma simples conta de divisão e de multiplicação, uma questão de tabuada.
Cheguei a Xangai após alguns dias em Pequim, creio que minha quinta visita em poucos anos. A cada vez, constato a verdade do que me comentou um colega: todos os livros, estudos e análises da China, por mais frescos e atualizados, estão sempre atrasados de uns dois anos. É como se sofressem de uma espécie de "jet lag" intelectual.
Fora dos pontos de referência imutáveis -a Cidade Proibida, a praça Tiananmen- mal se consegue reconhecer Pequim, onde o que não é novo em folha está em demolição ou construção. Não faz muito, Xangai concentrava 16% do total mundial de guindastes e maquinaria de construção pesada. Depois, tiveram de esmorecer um pouco porque o porto está afundando a um centímetro por ano, devido ao lençol subterrâneo e ao peso insuportável de arranha-céus maciços.
Essa é uma boa imagem do que acontece com a economia. Após crescer por mais de 20 anos à média anual de 9,3%, o governo achou que era hora de pisar no freio para dar uma rearrumada geral. As epidemias recentes, a poluição insuportável, o agravamento das disparidades mostraram que era preciso equilibrar um pouco o vertiginoso ritmo econômico em relação ao retardamento em matéria social e ambiental. Não se impressionem, contudo, com a anunciada desaceleração: ela visa apenas a passar de um galope desenfreado de 9% a um trote acelerado de 7%. O bastante para tirar o sono de um povo viciado em crescimento, mas que, para nós, ex-desenvolvimentistas aposentados e envelhecidos, parece rematada loucura, sonho só possível em nação jovem e imatura de 5.000 anos.
Mesmo assim, foi mantida a meta de chegar a 2020 com a renda per capita multiplicada por quatro, o que dará US$ 3.000 por pessoa ou um PIB de mais de US$ 4 trilhões. Se hoje a China já se converteu na maior fonte de aumento da demanda mundial de importações e é em grande parte responsável pela recuperação das cotações de minérios (como a nossa hematita), metais e outras matérias-primas, imagine o que não será então! O principal "think-tank" do governo chinês estima que, em pouco mais de três anos, a China chegará a importar US$ 1 trilhão, o que lhe garante o 3º lugar entre os maiores compradores, logo em seguida aos EUA e à Alemanha, já tendo ultrapassado o Japão. Somente isso bastaria para demonstrar por que a China tem de ser uma das principais prioridades do comércio exterior brasileiro.
O que mais fascina é assistir a essa reviravolta no país que, durante boa parte de sua história, foi o exemplo por excelência da opção preferencial pelo isolamento em relação ao mundo, de que se tornou símbolo a falida construção da Grande Muralha. Não que faltassem boas razões ao Império do Meio para desconfiar mais tarde das intenções da Companhia das Índias inglesa e de seu pioneiro papel no comércio do ópio, antecipando o cartel de Medellín na promoção do narcotráfico, sob a proteção das canhoneiras de Sua Majestade. Todos os intentos de defesa pelo isolamento falharam: a Muralha, a Guerra do Ópio, a Rebelião dos Boxers, a Revolução Cultural.
Os líderes chineses finalmente capitularam. Já que não podiam defender-se do mundo exterior, o melhor era juntar-se a ele, colocando-o a serviço do desenvolvimento chinês por meio dos investimentos das transnacionais e da exportação aos mercados alheios. Resultado: em 2003, o comércio exterior correspondeu a 60% do PIB, porcentagem sem precedentes em país de dimensão continental e gigantesco mercado interno.
Nem por isso a China descuidou do desenvolvimento humano. A pobreza absoluta, sobretudo na zona rural, foi reduzida de 85 milhões a 30 milhões de pessoas (menos de 625 yuans diários). Vim a Pequim para representar o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, na conferência sobre o desempenho chinês no atingimento das chamadas Metas do Milênio. Pude assim verificar que algumas das metas, tais como a de educação primária, foram alcançadas 13 anos antes da data limite (2015). É verdade que persistem desafios colossais em termos de combate à Aids e outras doenças, de aumento da desigualdade (muito relativa em comparação ao Brasil), de degradação ambiental. Nos próximos 17 anos, a China planeja fazer mudar para as zonas urbanas 500 milhões dos 900 milhões de habitantes do campo. O que isso representa em criação de empregos, em investimentos em casas, sistema de água e esgoto, eletricidade, transporte etc. é pesadelo rocambolesco para qualquer ministro de infra-estrutura.
Os chineses, porém, não se assustam. Conforme me disse o principal representante da ONU aqui, cada pessoa que se encontra está empenhada no seu auto-aperfeiçoamento. Quem não tem estudo superior quer fazer a universidade. Quem é bacharel quer ser mestre, doutor, professor. É até cansativo, comentou-me, ninguém relaxa, todos sabem que o desenvolvimento é um processo contínuo de aprendizagem, que começa na esfera individual e contagia a sociedade inteira.
É de Napoleão a frase célebre: "A China é um gigante adormecido; melhor deixá-lo dormir porque, quando acordar, há de espantar o mundo". Não sei em que círculo do inferno estará hoje o profético corso. Lá onde estiver, haverá talvez de perceber que existia outro gigante pela própria natureza, plataforma de onde partiram os portugueses a fim de arrebatar-lhe Caiena, como reação de picuinha segura, do outro lado do Atlântico, à invasão francesa do território metropolitano. Bonaparte jamais imaginou que, anos mais tarde, ao chegar à Independência, um outro gigante se dotaria de hino que era já um programa: "Deitado eternamente em berço esplêndido".
O colosso chinês só acordou devido às fomes, à guerra civil, à humilhação estrangeira, aos massacres nipônicos. O que será necessário para finalmente despertar o outro?


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).



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