São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Fatos e mitos de 1964

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A história representa não apenas um registro de fatos mas um esforço recorrente para escapar da sedução dos mitos e desfazer os fantasmas do passado. Para escapar aos meus, reli com atenção a "Fantasia Desfeita", de Celso Furtado, no segundo volume da sua obra autobiográfica (Paz & Terra, 1997). O mestre traça um painel sobre o quadro socioeconômico e político do Brasil do começo da década de 60 e ilumina a conjuntura que levou ao golpe de 1964.
Convocado por João Goulart para elaborar o Plano Trienal, ainda no período parlamentarista, contou com o apoio do Conselho de Ministros, composto por personalidades de notório saber e representação política, entre as quais se destacava San Tiago Dantas, então ministro das Relações Exteriores e nomeado ministro da Fazenda no retorno ao presidencialismo. Furtado conta que San Tiago o cumprimentou porque o programa de estabilização, com ataque gradual à inflação, não tinha recebido críticas técnicas do FMI. Mas reconhece que os problemas não eram "técnicos", mas, sobretudo, financeiros e políticos.
As pressões externas mais pesadas vinham da Secretaria do Tesouro dos EUA e dos banqueiros de Wall Street e diziam respeito não ao plano de estabilização, mas aos projetos de reforma bancária e tratamento do capital estrangeiro em curso no Congresso Nacional. San Tiago foi chamado por David Rockefeller, presidente do Chase, que ameaçou cortar o crédito externo se não fosse retirado o projeto dos bancos (ver Furtado, op. cit. pág. 251). Outro episódio de pressão financeira externa foi o compromisso de compra do grupo American Foreign Power (Bond and Share) com base no "princípio da justa compensação". O montante de US$ 135 milhões foi considerado excessivo por muitos especialistas brasileiros. "San Tiago Dantas, que enfrentava incompreensão no exterior, foi acusado, dentro do país, de conluio com interesses externos" (Furtado, op. cit., pág. 254).
Ao longo dos dois períodos do seu tumultuado governo, de menos de três anos, Jango teve cinco ministros da Fazenda. Entre os mais ilustres contavam-se Walter Moreira Salles, San Tiago Dantas e Carvalho Pinto. O rodízio dos ministros da área econômica revela não apenas a proverbial "indecisão" de Jango mas a profundidade da crise política e econômica do seu governo e confirma a hipótese de que não é por falta de quadros executivos que os governos naufragam. A instabilidade macroeconômica de então, como sempre, estava centrada nos problemas de financiamento externo. A relação dívida total/exportações era apenas de "dois" para "um", mas a dívida de curto prazo era muito pesada. As características do endividamento externo e as relações com o capital estrangeiro mudaram muito ao longo dos últimos 40 anos, mas a dependência financeira aumentou. Não há renegociação da dívida externa pública ou rolagem da dívida privada (com ou sem programa formal do FMI) sem que o comitê de bancos americanos a aprove.
Em junho de 1963, a instabilidade política e financeira agravou-se e Jango demitiu todo o ministério -de San Tiago ao ministro da Guerra. As autoridades americanas, depois da histeria da crise dos mísseis em Cuba e do assassinato de Kennedy, nada fizeram para ficar "neutras" na conspiração civil e militar que ganhou consistência com o agravamento da crise. O governo de Washington mantinha na prática dois embaixadores de fato no Brasil. O embaixador nomeado era Lincoln Gordon, que se encarregava dos contatos com a direita civil e apoiava o famoso Ipes, grupo de personalidades e economistas conservadores que iria constituir o núcleo do governo Castello Branco. O outro "embaixador" era o coronel Walters, que operava no mundo das maquinações dos serviços de inteligência e de segurança do governo americano. Gozando da intimidade de chefes militares brasileiros influentes, tinha acesso a informações e a operações de inteligência militar que nem o embaixador nem provavelmente os generais favoráveis a Jango podiam controlar.
Os protagonistas políticos centrais do golpe de 1964 foram os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e de São Paulo, Ademar de Barros, fechando o triângulo de forças que dava suporte à conspiração de generais do Estado Maior comandado na época pelo general Castello Branco. Os episódios finais, de março de 1964, são apenas epifenômenos da derrocada. O comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro foi respondido com a Marcha com Deus e pela Família em São Paulo. A sublevação dos marinheiros, quebrando a hierarquia militar, foi a gota d'água e o sinal para antecipar o golpe, deslocando a lealdade ao presidente de quase todos os comandantes de Exército. A grande imprensa, caixa de ressonância da classe média, propagava a sensação de "baderna". As declarações de "líderes" das esquerdas (com exceção de Miguel Arraes) e a pregação de Brizola (e sua pretensa ameaça do "grupo dos 11") reforçavam a direita golpista. Os célebres editoriais do "Correio da Manhã" e do "Jornal do Brasil" de 30 de março -"Chega! Basta!"- eram apenas o registro do acorde final.
Celso Furtado teve seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nš 1. Ao contrário da maioria dos intelectuais e companheiros de exílio, previu que o regime militar iria durar pelo menos 15 anos. Na verdade, prolongou-se por mais seis e retirou do páreo eleitoral os protagonistas civis do golpe. A luta pela redemocratização e os movimentos sociais ganharam dimensão nacional nos últimos anos da década de 70. Desde então, aos trancos, a sociedade brasileira recomeçou a Construção Interrompida, que é, antes de tudo, a luta pela construção de uma sociedade democrática, sem mitos e fantasias, mas também sem medo de fantasmas -vivos ou mortos.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet: www.abordo.com.br/mctavares

E-mail - mctavares@abordo.com.br



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