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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Fatos e mitos de 1964
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A história representa não
apenas um registro de fatos
mas um esforço recorrente para
escapar da sedução dos mitos e
desfazer os fantasmas do passado.
Para escapar aos meus, reli com
atenção a "Fantasia Desfeita", de
Celso Furtado, no segundo volume da sua obra autobiográfica
(Paz & Terra, 1997). O mestre traça um painel sobre o quadro socioeconômico e político do Brasil
do começo da década de 60 e ilumina a conjuntura que levou ao
golpe de 1964.
Convocado por João Goulart
para elaborar o Plano Trienal,
ainda no período parlamentarista, contou com o apoio do Conselho de Ministros, composto por
personalidades de notório saber e
representação política, entre as
quais se destacava San Tiago
Dantas, então ministro das Relações Exteriores e nomeado ministro da Fazenda no retorno ao presidencialismo. Furtado conta que
San Tiago o cumprimentou porque o programa de estabilização,
com ataque gradual à inflação,
não tinha recebido críticas técnicas do FMI. Mas reconhece que os
problemas não eram "técnicos",
mas, sobretudo, financeiros e políticos.
As pressões externas mais pesadas vinham da Secretaria do Tesouro dos EUA e dos banqueiros
de Wall Street e diziam respeito
não ao plano de estabilização,
mas aos projetos de reforma bancária e tratamento do capital estrangeiro em curso no Congresso
Nacional. San Tiago foi chamado
por David Rockefeller, presidente
do Chase, que ameaçou cortar o
crédito externo se não fosse retirado o projeto dos bancos (ver Furtado, op. cit. pág. 251). Outro episódio de pressão financeira externa foi o compromisso de compra
do grupo American Foreign Power (Bond and Share) com base
no "princípio da justa compensação". O montante de US$ 135 milhões foi considerado excessivo
por muitos especialistas brasileiros. "San Tiago Dantas, que enfrentava incompreensão no exterior, foi acusado, dentro do país,
de conluio com interesses externos" (Furtado, op. cit., pág. 254).
Ao longo dos dois períodos do
seu tumultuado governo, de menos de três anos, Jango teve cinco
ministros da Fazenda. Entre os
mais ilustres contavam-se Walter
Moreira Salles, San Tiago Dantas
e Carvalho Pinto. O rodízio dos
ministros da área econômica revela não apenas a proverbial "indecisão" de Jango mas a profundidade da crise política e econômica do seu governo e confirma a
hipótese de que não é por falta de
quadros executivos que os governos naufragam. A instabilidade
macroeconômica de então, como
sempre, estava centrada nos problemas de financiamento externo. A relação dívida total/exportações era apenas de "dois" para
"um", mas a dívida de curto prazo era muito pesada. As características do endividamento externo e as relações com o capital estrangeiro mudaram muito ao
longo dos últimos 40 anos, mas a
dependência financeira aumentou. Não há renegociação da dívida externa pública ou rolagem da
dívida privada (com ou sem programa formal do FMI) sem que o
comitê de bancos americanos a
aprove.
Em junho de 1963, a instabilidade política e financeira agravou-se e Jango demitiu todo o ministério -de San Tiago ao ministro da Guerra. As autoridades
americanas, depois da histeria da
crise dos mísseis em Cuba e do assassinato de Kennedy, nada fizeram para ficar "neutras" na conspiração civil e militar que ganhou
consistência com o agravamento
da crise. O governo de Washington mantinha na prática dois embaixadores de fato no Brasil. O
embaixador nomeado era Lincoln Gordon, que se encarregava
dos contatos com a direita civil e
apoiava o famoso Ipes, grupo de
personalidades e economistas
conservadores que iria constituir
o núcleo do governo Castello
Branco. O outro "embaixador"
era o coronel Walters, que operava no mundo das maquinações
dos serviços de inteligência e de
segurança do governo americano.
Gozando da intimidade de chefes
militares brasileiros influentes, tinha acesso a informações e a operações de inteligência militar que
nem o embaixador nem provavelmente os generais favoráveis a
Jango podiam controlar.
Os protagonistas políticos centrais do golpe de 1964 foram os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, de Minas Gerais,
Magalhães Pinto, e de São Paulo,
Ademar de Barros, fechando o
triângulo de forças que dava suporte à conspiração de generais
do Estado Maior comandado na
época pelo general Castello Branco. Os episódios finais, de março
de 1964, são apenas epifenômenos
da derrocada. O comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro foi
respondido com a Marcha com
Deus e pela Família em São Paulo. A sublevação dos marinheiros,
quebrando a hierarquia militar,
foi a gota d'água e o sinal para
antecipar o golpe, deslocando a
lealdade ao presidente de quase
todos os comandantes de Exército. A grande imprensa, caixa de
ressonância da classe média, propagava a sensação de "baderna".
As declarações de "líderes" das esquerdas (com exceção de Miguel
Arraes) e a pregação de Brizola (e
sua pretensa ameaça do "grupo
dos 11") reforçavam a direita golpista. Os célebres editoriais do
"Correio da Manhã" e do "Jornal
do Brasil" de 30 de março
-"Chega! Basta!"- eram apenas o registro do acorde final.
Celso Furtado teve seus direitos
políticos cassados pelo Ato Institucional nš 1. Ao contrário da
maioria dos intelectuais e companheiros de exílio, previu que o regime militar iria durar pelo menos 15 anos. Na verdade, prolongou-se por mais seis e retirou do
páreo eleitoral os protagonistas
civis do golpe. A luta pela redemocratização e os movimentos
sociais ganharam dimensão nacional nos últimos anos da década de 70. Desde então, aos trancos, a sociedade brasileira recomeçou a Construção Interrompida, que é, antes de tudo, a luta pela construção de uma sociedade
democrática, sem mitos e fantasias, mas também sem medo de
fantasmas -vivos ou mortos.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br
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