São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ARTIGO

Produzir no exterior é bom para os EUA

GLENN HUBBARD
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

A Heinz, uma empresa norte-americana famosa por suas 57 variedades de ketchup, tem 57 fábricas fora da América do Norte, de acordo com documentos apresentados à Securities and Exchange Commission (SEC, comissão de valores mobiliários, equivalente à CVM brasileira).
Os dirigentes da Heinz obviamente acreditam que essas operações atendam aos interesses de seus acionistas e elevem o valor das marcas que a empresa produz e comercializa. Estudos sobre empresas multinacionais sugerem que essa estratégia não só eleva o valor das marcas mas também propicia um patrimônio maior para os acionistas (em sua maioria norte-americanos) e promove a criação de empregos administrativos e de pesquisa mais bem pagos, no país de origem.
Estranhamente, John Kerry, o provável indicado do Partido Democrata às eleições presidenciais (e marido de Teresa Heinz Kerry, herdeira da marca de ketchup), delineou como objetivo a imposição de um tributo sobre os investimentos internacionais de empresas norte-americanas. A suposição seria que essa mudança política serviria para impedir que os presidentes "traiçoeiros" de corporações norte-americanas exportassem os empregos dos EUA. Críticas e propostas como essa revelam que o senador não compreende o funcionamento das multinacionais e o papel da "terceirização externa" no mercado de trabalho norte-americano.
Multinacionais como a Heinz, símbolos da indústria norte-americana e controladoras de marcas poderosas, produzem no exterior em larga medida para atender aos mercados internacionais. A escolha delas é menos entre produzir "aqui" ou "lá" do que entre produzir "lá" ou não produzir.
Embora os detalhes sobre o plano econômico de Kerry sejam escassos, ele talvez esteja de olho no incentivo fiscal às empresas americanas que operam fora do país (um alvo tradicional dos sindicatos dos EUA). O propósito do incentivo é mitigar a dupla tributação dos lucros de empresas americanas no exterior. Ou talvez ele pense em atacar a capacidade das multinacionais dos EUA para retardar o recolhimento de impostos sobre lucros externos até que esses fundos sejam repatriados.
Um trabalho recente realizado por Michael Devereux, da Universidade de Warwick, e por mim sugere que essa política já antiga, muitas vezes criticada como subsídio tributário para investimentos externos, é benéfica para o bem-estar dos norte-americanos, ao elevar o valor das marcas de empresas dos EUA. Em contraste com Kerry, o presidente George W. Bush instou o Congresso a alterar o sistema tributário em vigor para reforçar a competitividade norte-americana nos mercados mundiais.

Primo globalizado
O segundo equívoco de Kerry é que a terceirização de empregos norte-americanos ordenada por executivos "traiçoeiros" seria responsável pela queda do nível de emprego nos Estados Unidos. A terceirização externa é simplesmente o primo globalizado da terceirização interna, que se tornou uma característica fundamental do mercado de trabalho e da indústria norte-americana já há algumas décadas. As queixas ruidosas quanto à terceirização externa são apenas o início de uma jornada que levaria à condenação de quaisquer operações internacionais e até mesmo do comércio internacional em si.
Além disso, os fatos são mais sutis do que essas acusações nebulosas admitem. Empresas como a General Electric e a IBM propiciam muitos empregos -uma vez mais, empregos bem pagos, nas matrizes e nos setores de pesquisa- nos EUA, ao criar postos de trabalho em outros países. Os empregos fora dos EUA, enquanto isso, tanto garantem aos bens produzidos por empresas norte-americanas o acesso a mercados como ampliam a demanda mundial por esses produtos, ao reduzir os custos industriais.
A terceirização externa da produção de computadores pessoais e periféricos oferece um bom exemplo. Os custos mais baixos que resultam para os computadores ajudaram a ampliar a demanda das empresas por tecnologia da informação. Isso, por sua vez, ampliou a demanda por programadores de software e outros profissionais de tecnologia nos Estados Unidos.
Em termos de dados concretos, recente estudo dos economistas Gordon Hanson e Matthew Slaughter demonstra que os empregos externos e internos gerados pelas multinacionais norte-americanas se complementam, em termos gerais, ainda que haja certos efeitos de distribuição (mais empregos de alto salário, mas menos empregos para profissionais de baixa habilitação, no mercado de base).

Produtividade
O declínio no emprego da indústria dos EUA pode ser explicado pelo rápido crescimento da produtividade industrial ao longo dos últimos 50 anos. Essa mudança estrutural não está relacionada à substituição de "bons empregos" por "maus empregos". Os setores nos quais houve maior ganho de emprego são aqueles que envolvem postos de trabalho para profissionais relativamente bem qualificados e bem pagos.
O isolacionismo econômico de Kerry também ignora a importância da "terceirização reversa" nos EUA, com 6,4 milhões de trabalhadores, entre os quais funcionários bem pagos da Honda e da Mercedes-Benz na indústria automobilística, empregados por companhias estrangeiras.
Isso destaca a idéia de que as operações das multinacionais envolvem não tanto uma busca pelos custos trabalhistas mais baixos, mas, sim, a procura de acesso a mercados, recursos e capacitações. De fato, a transferência das instalações mundiais de desenvolvimento e pesquisa da Novartis para Cambridge, Massachusetts, o Estado de Kerry, com 400 empregos inicialmente e previsão de mil postos dentro de alguns anos, serve como exemplo dessa afirmação.
Que os ataques de Kerry às empresas norte-americanas sejam um equívoco não implica que essa questão deva ser ignorada no debate político nacional. Os trabalhadores norte-americanos merecem assistência em termos de treinamento e educação, como sugere a proposta de Bush para "contas pessoais de reemprego". E, como Bush observou, as empresas norte-americanas perdem competitividade devido aos altos custos da tributação empresarial, causas judiciais e assistência médica nos EUA.
Por isso, três vivas para o Heinz 57. O ketchup da Heinz é famoso por sair da garrafa devagar, no começo, mas depois se espalhar rapidamente. As idéias isolacionistas de Kerry para a economia merecem um sério estudo antes que saiam demais da garrafa.


Glenn Hubbard foi presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca no governo George W. Bush. É professor de economia e finanças na Universidade Columbia (EUA).

Tradução de Paulo Migliacci


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