São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Mato Grosso é Brasil?

PAULO RABELLO DE CASTRO

Mato grosso, 2004: a Agrishow do cerrado, feira mais importante do agronegócio da região Centro-Oeste, acaba de contabilizar o resultado de cinco dias de evento. Conforme divulgado pelos organizadores, o balanço parcial do movimento financeiro da Agrishow teria se aproximado de R$ 1,5 bilhão, com vendas concentradas em máquinas ultracomputadorizadas, silos e outros equipamentos de armazenagem e, quem diria, aviões agrícolas.
Para uma boa parte do Brasil estagnado, essa é uma surpresa das boas, por sinal. Saber que o Brasil da produção agropecuária vai bem é fundamental, não só para fazer cair o risco-país, pela certeza de divisas de exportação para honrar os compromissos da nossa conta financeira externa, como também por nos salvaguardar de uma crise de alimentos vindo maltratar os já machucados brasileiros. Nada de mal vai acontecer. Choveu na horta do Brasil em 2004. De norte a sul comemora-se uma abençoada abundância.
Nesse meio tempo, um panorama lúgubre se apresenta à vista do cidadão urbano. Apesar das reconfortantes declarações de Washington sobre o nosso "bom comportamento econômico", as expectativas do Brasil empresarial urbano permanecem retraídas.
O Brasil rural que brilha, destoando dos tons pálidos da economia urbana, não brilha por reflexo. Tem luz própria. O agronegócio brasileiro não vai bem por causa da política econômica, muito menos pela tranqüilidade e pela ordem social no campo. Aliás, pelo contrário. Sem medo de errar, dá para dizer que o agro brilha "apesar" da ação pública federal. O campo é o que é hoje porque o poder público fez o favor de esquecê-lo. Quando o crédito rural no Brasil chegou à cifra de US$ 25 bilhões, no fim da década de 70, muita gente pensava ser o apoio oficial aos empréstimos de custeio rural o responsável pelo sucesso dos 40 e tantos milhões de toneladas de grãos então produzidos. Os subsídios foram eliminados (felizmente!) e levaram o crédito junto. Em dólares, o crédito rural foi reduzido a US$ 5 bilhões, correspondentes a apenas 20% do que havia sido duas décadas antes.
Mas a pesquisa agrícola continuava, via Embrapa e por meio de instituições dos próprios agricultores, como a Fundação Mato Grosso e outras. Uma revolução silenciosa de tecnificação, de treinamento e gestão, de eliminação de desperdícios seguia acontecendo nos grãos, nas fibras, nas frutas, na cana, no café, nas carnes e até no leite, além dos hortícolas. Daí os recordes sucessivos em todas as linhas de produção agropecuária, sem exceção. Atingimos neste ano, em grãos, a marca de 130 milhões de toneladas e estamos partindo para muito mais!
A pergunta recorrente é: se o governo mais atrapalhou do que ajudou, por que a teimosa agropecuária do Brasil insiste em ser campeã do mundo?
Vocação, competência e arrojo seriam os três ingredientes que sobram na agricultura e faltam ao Brasil oficial. Vocação para os produtos da terra o país sempre teve. Mas, em alguns casos, como em frutas no Nordeste ou trigo no Sul, ainda há espaço para novas conquistas.
Vocação também se garimpa. Competência é filha primogênita da vocação, pois essa sem aquela não se desenvolve nem se capitaliza. Competência os agricultores foram buscar na pesquisa e na experimentação, arriscando muitas vezes para perder. Por isso, o terceiro ingrediente é essencial: Arrojo, com o qual se sustenta a persistência, até dominar as técnicas e conhecer melhor os mercados, além de tentar o que antes parecia impossível (como o plantio da soja no cerrado em solos quimicamente deficientes).
Existe hoje, portanto, um Brasil privado que ajuda o Brasil oficial a construir estradas, como fazem os agricultores de Mato Grosso, financiando as suas vias de escoamento. Pelas contas do atual secretário de Projetos Estratégicos de Mato Grosso (e um dos mentores da revolução agrícola aí ocorrida), Cloves Vettorato, o Estado deverá quase dobrar o PIB nos próximos quatro anos. Mesmo descontando um excesso de otimismo contido na estimativa, isso é mais do que uma pequena China acontecendo dentro do Brasil, lado a lado com a estagnação federativa que nos assola há alguns anos.
Acontece que o modelo produtivo brasileiro não é producente; é contraproducente. Decisões de onerar quem produz são muito mais freqüentes do que providências para desobstruir e liberar as forças produtivas. Era e continua sendo assim. Prevalece um modelo baseado na acomodação de um setor público inchado, que o setor privado sangra para financiar, enquanto a dívida de governo é bondosamente rolada no mercado a taxas de juros incompatíveis com o bom senso. Daí o freio artificial aplicado às atividades do mercado doméstico, que, não fossem subjugadas como o são hoje, poderiam ter desempenho tão ou mais dinâmico que o vitorioso agronegócio.
A culpa é nossa. Só nossa. Faz tempo que o Brasil urbano deixou de contabilizar seu futuro, de projetar seu porvir, de planejar seu vir a ser. O exemplo máximo dessa falta de querer coletivo é o meu Rio de Janeiro.
Não sei se o entusiasmado Cloves Vettorato, de Mato Grosso, está correto ao projetar uma duplicação do PIB estadual em quatro anos. Mas ele já acertou em cheio, por exercer o direito de sonhar acordado e planejar esse sonho, por ter a coragem de anunciar seu ponto de chegada, sua marca futura. Há quantos e quantos anos não ouvimos de uma única autoridade federal a enunciação de uma meta de crescimento econômico para o país? Não há quem se arrisque ao prognóstico no plano federal.
Por isso somos obrigados a ouvir, como ouviu o ministro Antonio Palocci Filho em Washington há poucos dias, que o FMI projeta crescimento superior a 4% para a economia do planeta, enquanto no Brasil a coragem dos governantes não arrisca sequer alcançar aquela média mundial. Preferimos perseguir metas inflacionárias. Por isso sou, pessoalmente, menos meta e mais mato. Mato Grosso, bem entendido.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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rabellodecastro@uol.com.br


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