São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um Pernambuco que deu certo

RUBENS RICUPERO

A o ler a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr., o que sempre faço com prazer e proveito, aprendi que Nelson Rodrigues dizia que, se o Brasil não existisse, o Ceará e o Piauí seriam grandes nações sul-americanas. Para não pensarem que era ironia ou um dos paradoxos hiperbólicos do grande dramaturgo, achei que distrairia talvez os leitores das emoções e sustos das peripécias eleitorais se lhes contasse que acabo de comprovar in loco a veracidade da afirmação.
Estive, de fato, em país que é menor da metade de cada um daqueles Estados nordestinos e mais se aproxima, embora não chegue a tanto, da superfície de Pernambuco. Com pouquíssima coisa a mais que 1% do território brasileiro e sem praticamente nenhum recurso natural, esse país deu o salto gigantesco de uma renda per capita de US$ 82, em 1961 -quando o Brasil empossava Jânio Quadros-, para cerca de US$ 9.000 agora -antes da desvalorização da crise de 1997, a renda atingiu US$ 11.385! Quarenta anos atrás suas exportações totalizavam US$ 41 milhões, um oitavo apenas das importações, ao passo que as exportações brasileiras eram de US$ 1.405 milhões, quase 35 vezes mais que as coreanas. No início dos 70, os dois países eram ainda comparáveis, com vantagem para o Brasil. Já em 2000, o Pernambuco dos antípodas, pois é de lá que se trata, exportava US$ 172,3 bilhões, três vezes mais que nós.
Quem chegou até aqui terá adivinhado que falo da Coréia do Sul, pequena grande nação que saiu destroçada da guerra de 1950 a 1953, véspera do período em que JK tentaria fazer com que o Brasil avançasse 50 anos em 5. Em toda a península, as baixas do conflito alcançaram a cifra de 4 milhões, às quais devem ser somadas as da 2ª Guerra Mundial, terminada cinco anos antes. Só a Coréia do Sul teve 1.313.000 baixas, a maioria civis, vendo destruídas 43% das indústrias e 33% das casas.
Como foi possível a esse povo recuperar-se de golpe tão aniquilador e, em menos de duas gerações, alcançar e superar o Brasil, quase cem vezes maior em área, com indústria e exportações, inclusive de manufaturados, muito superiores no início e que nunca sofreu destruição extensa de seus recursos humanos e físicos? Não me arriscarei a explicação exaustiva de fenômeno que mereceu livros volumosos e cuja discussão envereda às vezes pelas trilhas tortuosas da avaliação de fatores intangíveis, como o da ética do confucionismo ou o papel da ajuda americana no âmbito das prioridades da Guerra Fria (não esquecendo, por outro lado, que as despesas militares representaram ônus de 35% do Orçamento e 6% do PIB anuais).
Limito-me, por isso, a objetivo mais simples: identificar três ou quatro causas não-controvertidas e examiná-las com o espírito de tirar lições válidas para nós.
A primeira foi o esforço de equalizar relativamente as condições sociais no ponto de partida, mediante a reforma agrária de 1949, que limitou a três hectares a propriedade, de cada família de agricultores. Não estou insinuando que fizéssemos exatamente o mesmo no Brasil, pois são óbvias as diferenças em relação à escassez de terra. Assinalo apenas que, em economia na época dependente do campo em mais de 80%, a reforma equalizou o acesso ao principal fator de produção, conforme se fizera no Japão e em Taiwan, criando as condições de demanda para a industrialização. Conforme observou D.W. Nam, o pai do desenvolvimento do país, a Guerra da Coréia funcionou como nivelador adicional: "Éramos todos igualmente pobres então". Hoje o problema da desigualdade reapareceu, mas sem nenhuma comparação com a América Latina, onde jamais existiu esforço equalizador similar.
A segunda diferença tem sido a prioridade a uma educação disciplinada e rigorosa, na melhor tradição confuciana. Aqui, a Coréia levava vantagem na largada, uma vez que já dispunha de índice de mais de 90% de alfabetização. Atualmente é um dos raros, mesmo entre os ricos, que universalizaram em quase 100% a educação secundária.
A combinação da primeira e da segunda causas tornou possível a terceira, o rápido desenvolvimento de tecnologia aplicada a produtos de exportação. O lema nacional é alcançar e superar os admirados -mas pouco estimados- japoneses, os antigos colonizadores. Assim como sucedeu no desempenho na Copa, a Coréia passou à frente do Japão em certos itens de tecnologia de informação (36% das exportações contra 27% das nipônicas), em semicondutores, por exemplo, em que os coreanos são os primeiros exportadores de DRAMs desde 1992, o mesmo ocorrendo em computadores LCD de painéis grandes (desde 1998) e em várias áreas de equipamento de telecomunicações.
Em palestra sobre a competitividade coreana a que assisti, um dos analistas do Instituto de Pesquisas da Samsung definiu da seguinte forma a chave do êxito de seu país: desenvolva sua própria tecnologia, sobretudo concentrando-se em inovação do processo produtivo e em sistema de desenho autônomo. Uma boa ilustração da diferença de abordagem é em relação à indústria automobilística, introduzida no Brasil quase 20 anos antes. Só que nós importamos as transnacionais e seus modelos prontos, enquanto os coreanos desenvolveram carros de desenho próprio, contratando, no começo, "designers" italianos.
A quarta razão do sucesso é a economia voltada para as exportações, que correspondem a parcela entre 35% e 41% do PIB (com as importações, a proporção vai a cerca de 70%). Uma economia como a brasileira não precisaria chegar a tanto, convindo lembrar que, em média, no PIB dos EUA, o peso das exportações é de 11% ou 12%. Não há dúvida, porém, que a capacidade exportadora é que explica por que, após a crise de 1997-1998, a Coréia do Sul zerou, em nove meses, o déficit externo, registra 30 meses consecutivos de saldo comercial desde fevereiro de 2000 e reservas de US$ 110 bilhões em expansão.
Enquanto isso, no Brasil... Eu poderia continuar a encher colunas de comparações instrutivas, como, por exemplo, a valorização contínua das unidades de exportação coreanas, em contraste com o caso brasileiro, em que o aumento dos volumes mal consegue compensar a queda dos preços unitários. Meu propósito não é, contudo, repisar o óbvio e humilhar nosso orgulho com cotejos deprimorosos.
Quero tão-somente sugerir que, se um país menor que Pernambuco conseguiu tais resultados, deveríamos estudar sua lição de perto. Não necessariamente para tentar copiar o mesmo desempenho, tarefa difícil em relação a um povo que diz precisar trabalhar 24 horas por dia e 7 dias na semana e está ainda debatendo se deve ou não deixar de trabalhar no sábado.
Não sei o que nos reserva essa combinação perversa de ansiedade eleitoral e angustiante deterioração de expectativas econômicas. Suspeito que, seja qual for o desenlace imediato, uma saída duradoura da crise brasileira não poderá dispensar alguns dos ingredientes da fórmula coreana, em dosagem diferente e adaptada às nossas especificidades.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

E-mail - rubensricupero@hotmail.com



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