São Paulo, domingo, 28 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desigualdade e insegurança

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Na quinta-feira as Nações Unidas publicaram o "Relatório Sobre a Situação Social do Mundo em 2005". O texto completo ainda não está disponível, mas o resumo executivo informa que, nos últimos dez anos, a desigualdade progrediu no mundo. É o progresso promovido pelos ritmos, espasmos e trejeitos do capitalismo globalizado.
Na América Latina e no Brasil, a tendência ao aumento da desigualdade, já notada na década de 80, foi acentuada pelas políticas "reformistas" de Washington nos anos 90 e acatadas com entusiasmo pelas oligarquias locais. As novas estratégias de abertura financeira e de desestruturação das políticas de desenvolvimento foram iguais em todos os países da região e produziram os mesmos resultados econômicos e sociais desastrosos. Na segunda metade dos anos 90, a decepção era geral.
No famigerado período desenvolvimentista, de crescimento rápido, o aumento da desigualdade era contrabalançado por uma intensa mobilidade social, vertical e espacial. As reformas liberais não produziram mais empregos, melhores condições de vida e um futuro melhor para os filhos. O resumo do relatório da ONU sugere que a mobilidade vertical reverteu os motores. Isso foi fatal nas sociedades desprovidas de sistemas eficazes de proteção social, desenhados para cobrir os riscos do desemprego, da desqualificação profissional, da doença e da velhice. Na verdade, as políticas liberais cuidaram de transferir esses riscos para as vítimas das peripécias e dos azares da economia.
"A violência está freqüentemente enraizada na desigualdade", diz o relatório. Não se trata, como pretendem alguns, de ligar mecanicamente o aumento da violência à desigualdade, mas de reconhecer os processos sociais que articulam a percepção da iniqüidade, o bloqueio sistemático do acesso às oportunidades e as promessas de afluência e abundância inscritas na engrenagem econômica do capitalismo. Os estudos sobre o tema demonstram que as relações econômicas e sociais na periferia e nas favelas das grandes cidades empurram os jovens para a atividade ilícita. O crime torna-se uma forma de sobrevivência e de busca de dignidade por parte de milhares de jovens abandonados pela sociedade e pela política oficiais.
Nos países em que os sistemas de proteção contra os "acidentes" ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. A expansão da informalidade e da precarização das relações de trabalho -e a desagregação familiar que as acompanham- tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal -tráfico de drogas, venda de crianças, lavagem de dinheiro, seqüestros- passam a ocupar o espaço deixado pela perda das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia "oficial".
Nos últimos dez anos, os eleitores latino-americanos declararam reiteradamente estar em desacordo com as políticas que prometiam salvá-los, mas, de fato, os enfiaram no retrocesso econômico e na crise social permanentes. Governos ditos "progressistas" foram eleitos para mudar o roteiro. Os que conseguem terminar o mandato arrastam penosamente sua própria carcaça no deserto de ousadia e de idéias.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 61, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


Texto Anterior: Opinião econômica - José Alexandre Scheinkman: A violência policial ali e aqui
Próximo Texto: Mercado Aberto: Setubal defende punições e acordo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.