São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2007

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RUBENS RICUPERO

Quem precisa dos Estados Unidos?


Enquanto a China e a Ásia mantiverem altos os preços das commodities, a América Latina não precisa dos EUA

BRASILEIROS e latinos deixaram de olhar as eleições americanas como salvação para seus problemas. No passado, na disputa de Kennedy contra Nixon, em 1960, até o governo JK torcia pelo democrata, esperando que ele apoiasse a Operação Pan-Americana. Hoje, ninguém acredita que vá fazer muita diferença para nós quem estiver na Casa Branca a partir de 2009.
Dias atrás, tivemos na Faap debate sobre a campanha eleitoral nos EUA, com representantes do Woodrow Wilson Center, de Washington, e o diretor de seu Instituto Brasil, Paulo Sotero. Foram fascinantes as apresentações, como costuma ser tudo o que diz respeito ao maior espetáculo da Terra em matéria eleitoral: as eleições presidenciais americanas. Mas o fascínio brota do próprio objeto, não de sua relação conosco.
Durante décadas, pensava-se na América Latina que os democratas seriam mais solícitos às necessidades do continente. A política de boa vizinhança, de Roosevelt, e a Aliança para o Progresso, de Kennedy, criaram ou reforçaram tal percepção.
Não faltaram tampouco os exemplos negativos. A frustração da expectativa do Plano Marshall para o hemisfério, logo após a Segunda Guerra, deu início ao rosário das decepções. No Brasil, tomou a forma do abandono do Plano Salte, no começo da Guerra da Coréia.
Pior que a omissão de socorro foi o ativismo anticomunista da Guerra Fria: a Escola das Américas no Panamá, o ensino de técnicas repressivas, o estímulo a intervenções e golpes, o apoio a ditaduras militares. A luta contra as ditaduras também dirigia as esperanças a Washington, sobretudo com a eleição de Carter e a prioridade aos direitos humanos.
Liquidadas a Guerra Fria e as derradeiras guerrilhas, instalou-se uma espécie de indiferença recíproca. É como se os dois lados adotassem a orientação de "benign neglect" ("negligência benevolente"), que Nixon pregava, mas não praticava (basta ver seu papel contra Allende).
O fim dos regimes militares e da crise da dívida inaugura essa fase, que dura já 20 anos e três Presidências dos dois partidos: Bush pai, Clinton, Bush filho. Desde então, a política latino-americana dos EUA se caracteriza por três pilares: os acordos de livre comércio, o combate ao narcotráfico e a luta contra a migração.
Definidos em termos dos interesses americanos, os dois últimos são de natureza negativa para a América Latina. Os acordos comerciais ajudam, mas 15 anos de experiência mexicana indicam que eles estão longe de ser o que foi a adesão à União Européia para a Espanha e a Irlanda.
Ninguém se queixa e a explicação é simples: commodities. Enquanto a China e a Ásia mantiverem altos os preços e a demanda por commodities, a América Latina não precisa dos EUA, mercado saturado para esses produtos.
Os ianques nos pagam na mesma moeda: não precisam de nós. Suas prioridades estão alhures, nas sedutoras areias do Oriente. Lá, qualquer palavra atravessada dos iranianos tem o dom de perturbar o sono do mesmo presidente que reage com soberbo "neglect" às invectivas de Chávez.
Melhor a indiferença que a intervenção e/ou a exploração. Tranqüilos nos preparamos para assistir às eleições do Norte, sem imaginar que delas nos virá salvação ou ruína. Após cem anos de desilusões, norte-americanos e latinos descobrem finalmente que podem prescindir uns dos outros.


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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