São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Globalização e império

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

As únicas potências capazes de manter o centro político do sistema capitalista mundial e de expandir o seu capital sem limites territoriais a todos os continentes foram as anglo-saxônicas: a Inglaterra, do século 19 até a guerra de 1914, e os EUA, depois da Segunda Guerra. Partiram de economias e de Estados nacionais poderosos que não apenas derrotaram os seus adversários mas lograram a união do poder político-militar com o capital financeiro, o que lhes garantiu uma hegemonia global antes inexistente. Tiveram como instrumento principal de seu poder mundial, além das armas, a emissão de moeda internacional dominante que lhes permitiu financiar simultaneamente a dívida pública interna e a expansão para fora. As potências hegemônicas sempre puderam "resolver" os seus problemas do balanço de pagamentos pelos circuitos do capital financeiro internacional, embora esse movimento provocasse periodicamente especulações desenfreadas e crises nas duas principais praças financeiras do mundo, a City, de Londres, e Wall Street.
O deslocamento do poder mundial produziu modificações profundas na geoeconomia do sistema capitalista. O desenvolvimento capitalista nos vários continentes foi retardado ou facilitado pela geopolítica dos dois centros imperiais. São exemplos clássicos a destruição da indústria manufatureira da Índia no século 19, promovida pelo império britânico, e o "desenvolvimento a convite" do leste asiático ao abrigo da expansão militar do império americano. As guerras interimperialistas foram determinantes periódicas no bloqueio do comércio internacional. Afetaram de forma desigual o desenvolvimento das forças produtivas internas tanto de grandes potências no último quartel do século 19 quanto de algumas nações periféricas no século 20.
As tendências e os limites da expansão do capital e dos impérios modernos não são da mesma natureza. A expansão do capital tem sua expressão mais geral na apropriação privada da riqueza e na vocação compulsiva para a acumulação sem limites, que se expressa na sua forma mais geral, o dinheiro, que é o deus do mercado. A expansão do capital não se processa, porém, sob a forma de crescimento contínuo. Tem ciclos endógenos de acumulação, de incorporação de progresso técnico, de valorização e de desvalorização do capital financeiro. A incorporação crescente de novos mercados, de novos consumidores e de novos trabalhadores a taxas de exploração variável e a própria concorrência são forças propulsoras imanentes da expansão do capital. Suas contradições internas levam concretamente a recessões e crises que podem dar lugar a deslocamentos econômicos, sociais e políticos, mas raramente produzem por si sós "crises sistêmicas". Já a expansão do poder dos Estados nacionais com vocação imperial quase sempre se expressa em guerras mundiais com poderosos efeitos de ruptura sistêmica. A acumulação de poder das grandes potências pode ser igualmente compulsiva, mas a rivalidade imperialista não se processa da mesma forma que a concorrência capitalista. Os limites à expansão imperialista e à concentração de poder são sempre "externos" já que nenhuma potência capitalista foi derrubada ou barrada sem que outra a detivesse pelo poder das armas, em geral em aliança com outras potências rivais.
A ligação entre a expansão geográfica do capitalismo e a expansão dos impérios -decisiva para a história do sistema- não é dedutível do movimento imanente do capital, que tenderia a um capitalismo global unificado e centralizado, nem de uma teoria geopolítica abstrata que tenderia a um "império único". A concorrência dos capitais e a rivalidade entre potências dão ao sistema capitalista um dinamismo contraditório incompatível com a noção de "equilíbrio de mercado" ou de "equilíbrio de poder". Tampouco existe um padrão monetário internacional estável, como pretendem postular as teorias monetárias desde os economistas clássicos ingleses, que sempre andaram em busca de uma "constante", por meio da qual se pudesse medir o valor da riqueza universal. Tornar a moeda independente do poder político dos Estados é uma obsessão recorrente dos economistas, como demonstram tanto a proposta do Plano Keynes nas reuniões preparatórias de Bretton Woods como a atual doutrina neoliberal dos bancos centrais independentes em plena globalização financeira que levou ao paroxismo a politização do valor da moeda americana.
Para alguns economistas e sociólogos de esquerda e de direita, a ruptura do chamado "sistema de Bretton Woods" e as periódicas desvalorizações do dólar estão associadas à decadência da hegemonia americana ou à crise definitiva da "ordem capitalista". Para outros, agora que os ex-impérios milenares, a Índia e a China, estão sendo incorporados à economia capitalista mundial como Estados nacionais independentes e o império soviético ruiu, trata-se de uma vitória definitiva do capitalismo liberal e o caminho para uma "ordem unipolar".
O fato é que, mais uma vez, estamos num momento de descompasso entre a geoeconomia e a geopolítica tanto na Europa quanto na Ásia, sem esquecer a situação das periferias sul-americanas e africanas. Não estão à vista nem o "fim do império americano" nem o surgimento de um novo "hegemon", mas tampouco desapareceram os Estados nacionais, que são hoje a forma de organização política que mais se generalizou depois da descolonização. Apenas a hierarquia dos Estados mudou e seu raio de manobra para fazer a guerra e políticas financeiras autônomas é mais limitado, como sempre ocorre em períodos de intensa globalização financeira e concentração de poder político.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
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E-mail -
mctavares@abordo.com.br


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