São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

O conjunto Fascinação

Tinha cinco anos, lá por volta de 1955, e Poços de Caldas era uma cidade pequena, porém enjoada. Tínhamos professores de piano, dos quais o mais famoso era o professor Fábio, que praticava um sotaque francês enjoado e marcava o compasso falando "um, dós, um, dós".
Os alunos do professor Fábio se apresentaram em uma "audição" no cine Vogue. Lá fui eu, e toquei Musette. De brinde ganhei uma coleção de disquinhos infantis coloridos, aquelas obras-primas dirigidas por Braguinha, o João de Barros.
Um dos que mais me encantavam era o da "Bandinha do Cazuza", uma historinha simples de um menino que resolve montar sua bandinha, e vai juntando instrumentos, um a um até virar uma banda.
Começamos a montar a nossa "bandinha do Cazuza" lá por 1963 ou 1964 no Grupo Gente Nova. Foi uma mixórdia para ninguém botar defeito. Começou pelos violões: o João Amaral, o Tomás Tarquínio e o Netinho. O João seguiu a carreira de contador. Netinho, depois, virou Barbosinha, foi líder estudantil, preso político, depois, presidente do PC do B de São Paulo, depois dissidente, até morrer por problemas renais. O Tomás foi presidente do DCE da PUC justo em 1968, com votação maciça do eleitorado feminino. Terminou exilado, mas até hoje arranca suspiros de recordação das colegas.
A formação se desconformou no momento seguinte. Não era o caso de pensar em uma estrutura convencional e sair atrás dos músicos. Primeiro juntavam-se os músicos, depois se pensava no formato. E foi assim que se agregou o pistom do Arlei, que depois se formou geólogo pela USP. O Arlei era tão sistemático que sempre andava marchando e medindo as passadas. Explicava que era para a hipótese de se perder em um deserto e não correr o risco de, em tendo um passo maior do que o outro, andar em círculos.
O instrumento seguinte foi o bongô do Adnei, que depois virou prefeito de Poços. O Adnei imitava muito bem duas vozes das mais improváveis do cancioneiro internacional: o Ray Charles e o seu Tião Pamonheiro, violeiro e cantador de congo. Vocês já imaginaram um congo cantando "I can't stop loving you"? Pois precisavam ter ouvido o Adnei.
O instrumento seguinte foi o violino do Fontela, que hoje é advogado e autor anônimo de clássicos consagrados da literatura erótica. Tinha um problema: os agudos do violino enlouqueciam os cachorros da vizinhança, nas nossas serenatas. Mas quando a gente tocava aquela música do canário ("certa vez / um lindo canário eu vi"), o violino fazia um trinado que deixava doente de paixão todas as canárias da região.
Finalmente aceitaram meu cavaquinho com afinação de bandolim. Era o caçula da turma, mas muito empenhado no sucesso do grupo, solenemente batizado de Fascinação -com brasão bordado e tudo. Tanto que, numa vinda a São Paulo, fui de ônibus até a Casa Mannon e encomendei partituras para nosso conjunto. Quando descrevi a formação, o vendedor achou que era gozação de minha parte.
Montado o conjunto, a primeira música que ensaiamos foi a nossa música tema. Depois fomos tirando "La Barca", o "Relógio", as músicas do Lucho Gatica, as canções do trio Peter, Paul e Mary, o Ray Charles, "Blue Moon".
Com 13 anos, ainda era verde para namoro. Mas posso garantir que a turma inteira se tornou a paixão das meninas e o terror dos cachorros.
A tragédia nos atingiu no dia em que o compadre Zé Tomé nos procurou. Ele era locutor da rádio Cultura e apresentava todas as manhãs, com meu tio Léo (o "cumpade" Léo) o programa "Alvorada Sertaneja". Pois o Zé Tomé, e sua voz de bronze, nos convidou para acompanhar a mais nova crooner da rádio Cultura: sua filha.
Alguma coisa não deu certo. Acho que foi uma incompatibilidade de tons: o nosso nunca se encontrava com o dela, e vice-versa. Liquidamos com a carreira dela, e ela, em contrapartida, liquidou com a nossa.
O certo é que a música de Poços de Caldas saiu muito engrandecida do episódio.


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