São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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ANÁLISE

O orgulho japonês vai para a China

KEN BELSON
DO "NEW YORK TIMES", EM XANGAI

Não há mais hesitação. Agora até mesmo o maior orgulho do Japão, seus grandes fabricantes de eletrônicos, está tomando o caminho da China.
As empresas estão construindo imensas fábricas e centros de pesquisa no país para aproveitar a abundante mão-de-obra chinesa, que é capaz de executar praticamente qualquer tarefa realizada pelos trabalhadores japoneses. Devido a pressões de custo, elas esquecem os velhos temores de roubo de tecnologia ou de publicidade desfavorável em seu país e transferem empregos de alta remuneração para fora do Japão.
"No passado, nós hesitávamos, mas agora já não se pode dizer o mesmo", afirmou Hiroyuki Mineta, presidente do conselho da subsidiária da Pioneer em Xangai, enquanto caminhava pela fábrica onde centenas de operários chineses estavam ocupados construindo 11 tipos de aparelhos de DVD. "Temos de superar nosso medo, ou não seremos capazes de sobreviver no mercado."
Diferentemente da primeira geração de fábricas japonesas na China, que produzia aparelhos como máquina de lavar, ar-condicionado e equipamento de som para venda principalmente na China e nos países vizinhos, a fábrica da Pioneer, a uma hora de carro do centro de Xangai, monta os mais avançados bens de consumo eletrônicos e os exporta para a Europa, os Estados Unidos e até mesmo para o Japão.
Hiroshi Matsuo, da Sharp, diz que sua empresa também está superando a vacilação. Como a NEC, a Toshiba e outras, a Sharp está em ação, recrutando engenheiros chineses para seus novos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento em Xangai.
Por enquanto, eles trabalharão apenas em produtos cujo destino é o mercado local. Matsuo diz que os engenheiros japoneses do grupo são melhores no projeto dos principais componentes que distinguem os aparelhos eletrônicos. Mas os engenheiros chineses da Sharp, que recebem salários equivalentes a um quarto da remuneração japonesa, estão reduzindo esse diferencial de talento.
"Nossos principais executivos temem exportar trabalho intelectual para a China", disse Matsuo. "Mas, ao compararmos os engenheiros chineses e japoneses em custo/benefício, a vantagem fica com os primeiros. Eles têm mais vontade. A maior parte dos japoneses já não se sente assim."
Um executivo japonês fazer uma declaração como essa era impensável alguns anos atrás. Os gigantes da eletrônica japoneses há décadas funcionam como símbolos de know-how e poderio corporativo, com marcas mundialmente famosas, trabalhadores bem pagos e bilhões em vendas.
Mas, com o estouro da bolha de tecnologia e com a tendência para a perda de distinção até mesmo entre os produtos digitais mais sofisticados, empresas que vão da Sony e Matsushita às menores companhias japonesas se vêem sob crescente pressão de rivais cujos custos são menores, como a sul-coreana Samsung e a Dell, que terceiriza boa parte de sua produção para fabricantes instalados em toda a Ásia.
O Japão investiu US$ 4,2 bilhões de maneira direta em fábricas e em outras operações na China em 2002, e o setor de eletrônica respondeu por mais de 40% do capital industrial investido.

Agravante
É improvável que o nível se reduza, pelo menos a curto prazo, dizem executivos e especialistas na indústria japonesa, especialmente porque o Japão aderiu relativamente tarde à tendência de transferir a produção ao exterior. Incluídos todos os setores industriais, as empresas japonesas realizam hoje cerca de um sexto de sua produção no exterior, ante 27% das norte-americanas.
A transferência para a China está acontecendo não só em detrimento dos operários e das fábricas no Japão mas também de outros países do Sudeste Asiático, a região para a qual muitos fabricantes japoneses se voltaram nos anos 80 e no começo dos anos 90. A Matsushita, maior fabricante japonesa de eletrônicos, disse que pretende eliminar 40% de suas subsidiárias de produção e vendas no Sudeste Asiático até 2006, porque os custos na região são mais altos do que na China.
Em sua corrida para a China, a Matsushita e suas concorrentes fecharam dezenas de fábricas no Japão, pressionaram dezenas de milhares de operários a se aposentar mais cedo e cortaram o número de formandos que contratam das universidades japonesas, o que reforça o temor de que empregos de alta qualificação estejam sendo perdidos permanentemente. E, de 1991 para cá, 2,5 milhões de empregos industriais desapareceram no Japão, uma queda de 25%.
Nos Estados Unidos, onde o êxodo de empregos industriais é uma história antiga, as leis trabalhistas flexíveis e um sistema financeiro favorável aos empreendedores fomentam a criação de novos negócios. Mas as autoridades japonesas demoraram a relaxar seu controle férreo da economia, o que torna o país um dos lugares mais caros do mundo para os negócios.
A relação entre o Japão e a China, repleta de antipatias e queixas históricas, continua incerta. Os comentaristas nacionalistas e os sindicatos japoneses fazem da China uma ameaça, um buraco negro de empregos; mas, ainda assim, os consumidores japoneses conseguem esticar sua renda, estagnada ou em queda há alguns anos, comprando produtos têxteis, comida e outros bens chineses baratos.

Benefícios
As novas fábricas que empresas do primeiro time como a Hitachi e a Fuji Film estão abrindo na China tornam suas matrizes no Japão muito mais capazes de sobreviver no mercado mundial. E a economia chinesa, que cresce e se moderniza rapidamente, é grande consumidora de aço, máquinas e equipamentos de controle japoneses, o que gera um importante mercado para os bens de capital.
No geral, o comércio entre a China e o Japão cresceu 34% nos primeiros seis meses de 2003, para US$ 60,4 bilhões, um recorde. Sem o comércio com a China, calculam os analistas, a economia japonesa poderia não ter crescido em 2002.
As empresas japonesas dizem que as tecnologias essenciais que acionam a maior parte dos eletrônicos continuarão a ser desenvolvidas no Japão e enviadas para a China em forma de "caixas-pretas" a serem instaladas nos produtos montados localmente.
Mas, para recuperar o investimento em pesquisa, muitas empresas japonesas agora começam a licenciar até mesmo essas essenciais tecnologias para indústrias chinesas, entre as quais alguns concorrentes diretos, uma prática que Yukio Shohtoku, um dos vice-presidentes da Matsushita, e outros executivos reconhecem ser uma possível faca de dois gumes.


Tradução de Paulo Migliacci


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