São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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RUBENS RICUPERO

A luz os deslumbra


Os fachos sulfurosos que varrem o pântano provêm do fogo-fátuo da economia faz-de-conta do mercado

EM CORO EMBEVECIDO , clama a saparia dos comentaristas econômicos: "Nunca foi tão bom!" - "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!".
No charco tristonho e escuro, a economia cresce menos que o mundo, que os emergentes, os latinos, os africanos, lenta e pálida como a flor da noite.
No entanto, "enfunando os papos, saem da penumbra [...] os sapos. A luz os deslumbra".
Que luz será essa? A taxa de juros mais alta do planeta, em nível incompatível com a expansão da produção e do investimento?
A de câmbio, que só perdeu neste ano para a da Austrália em termos de apreciação, deixando para trás chineses, indianos, japoneses e outros povos vagarosos?
A de investimento, que mergulhou à fundura de 16%, um dos pontos mais baixos de nossa história?
A do aumento do volume de exportação de manufaturados, que escorregou de 26% em 2004 para 11% em 2005 e apenas 2% em 2006, indicando o triste fim que nos espera?
O brilho que ofusca os batráquios e faz cantar as pererecas não tem nada a ver com a luzinha pisca-pisca de uma economia real mergulhada no lusco-fusco. Esta acende e apaga como os vaga-lumes de que falava Fernand Braudel: brilham, mas não indicam o caminho.
Os fachos sulfurosos que por intervalos varrem o pântano provêm do fogo-fátuo da economia faz-de-conta do mercado financeiro: a queda dos pontos de risco, a miragem do grau de investimento, os fluxos de capitais de arbitragem atraídos pelos juros altos e a moeda valorizada.
Da mesma forma que o obsceno delírio das Bolsas quando empresas demitem milhares de empregados, os vampiros do mercado mal disfarçam a excitação com que, deliciados, saboreiam as quedas do dólar.
Para eles, a desindustrialização não tem importância, o real apreciado é um problema positivo. Por que será que nenhum comentou o estudo da Carta do Iedi de março (www.iedi.org.br) mostrando que só nove, de 34 setores industriais, não registraram sensíveis reduções no valor agregado? Ninguém terá achado sugestivo que quase todas essas exceções se concentram nas áreas extrativas e similares, não na indústria de transformação?
Por que o silêncio com que se acolhe a notícia de que os segmentos de alta e média tecnologia (eletroeletrônicos, automobilístico, químicos) sofreram perdas de valor adicionado que chegam a 50%?
Quantos jornais deram destaque ao artigo de 16 de abril do "Herald Tribune" sobre as milhares de demissões anunciadas por multinacionais no Brasil?
Algum meio de imprensa preocupou-se em publicar reportagens "de interesse humano" sobre o laborioso Vale dos Sinos gaúcho, que teve, em 2006, perdas de emprego de 5,4% no vestuário, 13,2% em calçados, 6,9% em máquinas e equipamentos, com mais de 4.000 demissões adicionais nos primeiros meses deste ano?
Enquanto isso, no brejão do Banco Central, bradam os sapos-tanoeiros: "A grande arte é como lavor de joalheiro". Na partitura do Cecom, não é preciso mudar nada: é preciso apenas que seja uma canção bem martelada.
Crescer, para quê, se, no fim do dia, os juros pingam gordos?
Emprego? É coisa pra chinês, que só come uma vez por mês.
Eufórica, entoa a orquestra hilária:
"Não há mais economia,
Mas há meta inflacionária...."
Para melhor nutrir as tripas, o manguezal é loteado em 38 minicharcos pelos sapos-pipas.
Em brado que o Planalto todo aterra, o barbudo sapo-boi raivoso berra: "Neste lamaçal, sou eu que impera!" - "Sou!" - "Não sou!" -"Sou!".
Longe, bem longe dessa grita, 3,5 milhões de jovens de 16 a 24 anos, 45% da força de trabalho, não encontram emprego nem guarita. Quatro milhões já deixaram o país e, a cada ano, dos que partem, 150 mil têm diploma superior.
Dobrou, de 95 a 2005, o número de desempregados jovens, um em cada cinco, uma em cada quatro das mulheres, 15,3% dos homens. As cifras deixam mudo, é natural, o coro dos sofistas, mas não são estranhas ao horror do crime, ao medo que nos corrói e nos habita.
São esses "inúteis para o mercado", fugidos ao mundo, sem glória, sem fé, no perau profundo, que soluçam, transidos de frio, sapos-cururus da beira do rio...
(Com as homenagens e os agradecimentos à involuntária colaboração de Manuel Bandeira).


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda. Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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