UOL


São Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Por falar em desigualdade

PAULO RABELLO DE CASTRO

Se você pegar um chicote flexível e alongado, como esses que o domador de leões usa no circo, poderá conferir, na prática, uma das leis econômicas mais importantes sobre a desigualdade na distribuição da renda econômica: é que um pequeno movimento na mão que segura o chicote faz estalar e doer na extremidade oposta do cabo. E, quanto mais comprido o chicote, maior o efeito. O domador jeitoso e experiente fará os leões sentirem a autoridade do chicote sem que a ponta perigosa venha a machucar os animais. Mas o domador inexperiente ou malvado castigará os bichos com crueza.
Na economia também se passa mais ou menos assim. A propagação de movimentos sutis sempre ocorre, com intensidade crescente, em direção às camadas inferiores de renda da sociedade. Estas sofrem mais (ou se beneficiam mais), dependendo do impulso e da natureza da "onda" provocada por uma decisão política e econômica no topo.
Políticas que provocam mais desigualdade deveriam ser tratadas com o máximo cuidado em países extremamente desiguais. E, no Brasil, o chicote é bastante comprido!
Com o chicote dos juros altos, a política econômica dos últimos meses tem acentuado a tendência a se perpetuar à desigualdade. Até agosto, o capital acumulado nos FIFs (Fundos de Investimentos Financeiros) havia alcançado R$ 400 bilhões. Num cálculo conservador, a taxa de juros básica, praticada na rolagem dos títulos da dívida pública nesse período, deve ter ficado pelo menos cinco pontos percentuais acima do que se poderia chamar de "política monetária severa". Isso equivale a dizer que o governo transferiu, no último ano, pelo menos R$ 20 bilhões (5% de R$ 400 bilhões) para as contas de detentores de fundos de investimento, que registraram com satisfação esse ganho extra, acima de rendimentos já tipicamente elevados.
Se fosse só isso, mas por uma boa causa, quem sabe pudéssemos aceitar a idéia do sacrifício geral, em razão de um futuro melhor.
Mas não. O excesso de juros, transferidos aos detentores de fundos de dívida pública, correspondeu a um excesso de déficit público nominal, ou seja, o governo praticou uma invasão no campo do setor privado produtivo, aumentando tributos e constrangendo a demanda de empresas e consumidores na mesma proporção das transferências de renda aos membros mais abastados da nossa sociedade. Muitos pagaram a poucos.
Esse movimento brusco gerou uma propagação, em ondas sucessivas, de redução de capacidade de compra e, portanto, de postos de trabalho e de intenções de investir, fazendo a taxa de crescimento, que já era baixa, convergir para zero em 2003.
Uma séria e detida reflexão sobre esse efeito de propagação deveria ser conduzida pelos especialistas e entendidos em "pobreza" e "desigualdade", cujos seminários e workshops têm se multiplicado em tempos recentes. A pobreza no Brasil certamente tem explicações estruturais bastante conhecidas. Porém intuo que nenhuma outra causa recente haverá de se comparar aos efeitos deletérios da política de juros estabelecida como pedra de toque da estratégia econômica pelas últimas administrações.
Com R$ 20 bilhões de transferências diretas para as contas bancárias dos detentores de títulos públicos, somadas à perda de crescimento (ao menos dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 30 bilhões), chegamos à cifra espantosa de R$ 50 bilhões subtraídos da sociedade apenas nos últimos 12 meses. Mais do que toda a arrecadação anual do Imposto de Renda retido na fonte. Não é necessário comparar esse valor ao esforço despendido nos programas sociais dos governos Lula ou FHC para perceber que uma nefasta política de juros não só neutraliza mas ultrapassa, em efeitos propagadores negativos, quaisquer outros impactos gerados por políticas sociais compensatórias.
Tampouco é preciso ser um gênio da matemática econômica para deduzir que o Fome Zero, ou o Primeiro Emprego, ou o Bolsa Família não cumprirão seus objetivos, sequer parcialmente, enquanto persistirem as iníquas transferências de renda dos mais pobres para os mais ricos! A falta de entendimento dessa falha estrutural do modelo de estabilização adotado pelo país não só inviabilizará as políticas de rendas do governo Lula como, principalmente, propagará o sofrimento à base da pirâmide social, cuja dor o presidente gostaria tanto de mitigar.
Mais grave ainda são os efeitos dos juros altos como inviabilizadores de políticas econômicas de longo prazo, como a construção civil e, em especial, a habitação popular ou os assentamentos rurais-urbanos. Nenhuma política que dependa de uma curva de juros de longo prazo pode resistir ao que vem sendo praticado no mercado financeiro brasileiro. No entanto sabemos que o objetivo final da administração Lula seria o da "democratização do acesso à riqueza" a milhões de famílias, meta só alcançável por programas habitacionais que materializassem o sonho da casa própria.
Mas, com o chicote comprido dos juros, em mãos inábeis, seu efeito concentrador de renda no horizonte curto vai continuar se agigantando lá na ponta, no prazo mais longo, com efeitos devastadores sobre horizontes de dez ou 20 anos à frente (sugiro, a propósito, a leitura para os interessados do documento "The Role of Affordable Mortgages...", por S. N. Erbas e F. E. Nothaft, IMF Working paper 02/17, jan./02, www.imf.org/external/pubs/ft/ wp/2002/wp0217.pdf).
Temos pouco tempo para meditar mais profundamente sobre o equívoco central da política econômica brasileira. Por falar em desigualdade, os economistas da pobreza devem incluir o chicote dos juros altos nos seus cálculos de pauperismo social.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Trabalho: Greve deve crescer em montadoras
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.