|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Por falar em desigualdade
PAULO RABELLO DE CASTRO
Se você pegar um chicote flexível e alongado, como esses
que o domador de leões usa no
circo, poderá conferir, na prática,
uma das leis econômicas mais
importantes sobre a desigualdade
na distribuição da renda econômica: é que um pequeno movimento na mão que segura o chicote faz estalar e doer na extremidade oposta do cabo. E, quanto
mais comprido o chicote, maior o
efeito. O domador jeitoso e experiente fará os leões sentirem a autoridade do chicote sem que a
ponta perigosa venha a machucar os animais. Mas o domador
inexperiente ou malvado castigará os bichos com crueza.
Na economia também se passa
mais ou menos assim. A propagação de movimentos sutis sempre
ocorre, com intensidade crescente, em direção às camadas inferiores de renda da sociedade. Estas sofrem mais (ou se beneficiam
mais), dependendo do impulso e
da natureza da "onda" provocada por uma decisão política e econômica no topo.
Políticas que provocam mais
desigualdade deveriam ser tratadas com o máximo cuidado em
países extremamente desiguais.
E, no Brasil, o chicote é bastante
comprido!
Com o chicote dos juros altos, a
política econômica dos últimos
meses tem acentuado a tendência
a se perpetuar à desigualdade.
Até agosto, o capital acumulado
nos FIFs (Fundos de Investimentos Financeiros) havia alcançado
R$ 400 bilhões. Num cálculo conservador, a taxa de juros básica,
praticada na rolagem dos títulos
da dívida pública nesse período,
deve ter ficado pelo menos cinco
pontos percentuais acima do que
se poderia chamar de "política
monetária severa". Isso equivale
a dizer que o governo transferiu,
no último ano, pelo menos R$ 20
bilhões (5% de R$ 400 bilhões)
para as contas de detentores de
fundos de investimento, que registraram com satisfação esse ganho extra, acima de rendimentos
já tipicamente elevados.
Se fosse só isso, mas por uma
boa causa, quem sabe pudéssemos aceitar a idéia do sacrifício
geral, em razão de um futuro melhor.
Mas não. O excesso de juros,
transferidos aos detentores de
fundos de dívida pública, correspondeu a um excesso de déficit
público nominal, ou seja, o governo praticou uma invasão no campo do setor privado produtivo,
aumentando tributos e constrangendo a demanda de empresas e
consumidores na mesma proporção das transferências de renda
aos membros mais abastados da
nossa sociedade. Muitos pagaram
a poucos.
Esse movimento brusco gerou
uma propagação, em ondas sucessivas, de redução de capacidade de compra e, portanto, de postos de trabalho e de intenções de
investir, fazendo a taxa de crescimento, que já era baixa, convergir para zero em 2003.
Uma séria e detida reflexão sobre esse efeito de propagação deveria ser conduzida pelos especialistas e entendidos em "pobreza"
e "desigualdade", cujos seminários e workshops têm se multiplicado em tempos recentes. A pobreza no Brasil certamente tem
explicações estruturais bastante
conhecidas. Porém intuo que nenhuma outra causa recente haverá de se comparar aos efeitos deletérios da política de juros estabelecida como pedra de toque da estratégia econômica pelas últimas
administrações.
Com R$ 20 bilhões de transferências diretas para as contas
bancárias dos detentores de títulos públicos, somadas à perda de
crescimento (ao menos dois pontos percentuais do PIB, ou cerca
de R$ 30 bilhões), chegamos à cifra espantosa de R$ 50 bilhões
subtraídos da sociedade apenas
nos últimos 12 meses. Mais do que
toda a arrecadação anual do Imposto de Renda retido na fonte.
Não é necessário comparar esse
valor ao esforço despendido nos
programas sociais dos governos
Lula ou FHC para perceber que
uma nefasta política de juros não
só neutraliza mas ultrapassa, em
efeitos propagadores negativos,
quaisquer outros impactos gerados por políticas sociais compensatórias.
Tampouco é preciso ser um gênio da matemática econômica
para deduzir que o Fome Zero, ou
o Primeiro Emprego, ou o Bolsa
Família não cumprirão seus objetivos, sequer parcialmente, enquanto persistirem as iníquas
transferências de renda dos mais
pobres para os mais ricos! A falta
de entendimento dessa falha estrutural do modelo de estabilização adotado pelo país não só inviabilizará as políticas de rendas
do governo Lula como, principalmente, propagará o sofrimento à
base da pirâmide social, cuja dor
o presidente gostaria tanto de mitigar.
Mais grave ainda são os efeitos
dos juros altos como inviabilizadores de políticas econômicas de
longo prazo, como a construção
civil e, em especial, a habitação
popular ou os assentamentos rurais-urbanos. Nenhuma política
que dependa de uma curva de juros de longo prazo pode resistir ao
que vem sendo praticado no mercado financeiro brasileiro. No entanto sabemos que o objetivo final da administração Lula seria o
da "democratização do acesso à
riqueza" a milhões de famílias,
meta só alcançável por programas habitacionais que materializassem o sonho da casa própria.
Mas, com o chicote comprido
dos juros, em mãos inábeis, seu
efeito concentrador de renda no
horizonte curto vai continuar se
agigantando lá na ponta, no prazo mais longo, com efeitos devastadores sobre horizontes de dez
ou 20 anos à frente (sugiro, a propósito, a leitura para os interessados do documento "The Role of
Affordable Mortgages...", por S. N.
Erbas e F. E. Nothaft, IMF Working paper 02/17, jan./02,
www.imf.org/external/pubs/ft/
wp/2002/wp0217.pdf).
Temos pouco tempo para meditar mais profundamente sobre o
equívoco central da política econômica brasileira. Por falar em
desigualdade, os economistas da
pobreza devem incluir o chicote
dos juros altos nos seus cálculos
de pauperismo social.
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Trabalho: Greve deve crescer em montadoras Índice
|