São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Paz, queremos paz

RUBENS RICUPERO

Farto de autógrafos e fotografias, de entrevistas para jornais e depoimentos para estudantes, de pedidos de prefácios elogiosos para gênios poéticos incompreendidos, Drummond culminava seu "Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz" implorando pateticamente: "Quero a paz das estepes / a paz dos descampados / a paz do pico de Itabira quando havia pico de Itabira / a paz de cima das Agulhas Negras / a paz de muito abaixo da mina, mais funda e esboroada de Morro Velho / a paz / da / paz".
É o que hoje temos vontade de gritar, ao ver como este ano inaugurado pelos bombardeios no Afeganistão se encerra agourentamente pela aproximação inexorável da guerra contra o Iraque. Como se fosse pouco, a Coréia do Norte, em tática oposta à de Bagdá, multiplica as confissões comprometedoras sobre suas (más) intenções nucleares.
O que o Pentágono em resposta multiplica são ameaças: a de que tem a capacidade de desencadear, ao mesmo tempo, duas guerras fulminantes, uma contra o Iraque, outra contra a Coréia do Norte, a de que não hesitará, se preciso, em ser o primeiro -como no Japão em 1945- a usar bombas atômicas, até mesmo contra países que assumiram o compromisso de não desenvolver armas nucleares; a de que poderá fazê-lo, eventualmente, em reação a ataques químicos ou bacteriológicos dos iraquianos. Por sua vez, no Oriente Médio, o estoque de ódio e rancor se renova constantemente ao espetáculo das humilhações, massacres, atentados suicidas, demolições deliberadas e expulsões, desespero lancinante de funerais de crianças e mulheres, que se instalam em nossos aparelhos de TV como a rotina obrigatória dos noticiários cotidianos.
Após o rápido entreato de ilusões que se seguiu à queda do muro de Berlim, o novo século cada vez se parece mais ao trágico "curto século 20", introduzido pela primeira das guerras de destruição maciça de populações civis e tornado infame por Auschwitz e Hiroshima, antes de se desintegrar com o colapso do comunismo. Pensávamos ter deixado definitivamente para trás os piores horrores do século 20: o genocídio, o terror do extermínio atômico, a expulsão de populações inteiras em nome da "purificação étnica". Descobrimos agora que estão de volta alguns dos mais sinistros sintomas do culto da violência, que corrompeu a alma daquele século. Os neoconservadores enlouquecidos que dominam as fundações direitistas influentes no pensamento estratégico dos EUA tiraram as lições erradas do naufrágio da URSS. Para eles, o realismo cru do poder, a embriaguez resultante da superioridade esmagadora de armamentos tornam dispensável a prévia exigência de justiça com base irredutível da paz genuína. Não podendo (ou não querendo) oferecer a justiça a palestinos, árabes e outros rebeldes, julgam poder substituí-la pelo excesso de sofrimento e o medo do castigo. Sua lógica é tortuosa e não enxerga contradições em recorrer à violência para liquidar com a violência, em promover belicosamente a não-proliferação de armas de destruição em massa e, simultaneamente, rechaçar o tratado contra as minas pessoais, sabotar o Tribunal Penal Internacional, enfraquecer a convenção sobre armas bacteriológicas, ameaçar de ataques nucleares os desarmados.
A verdade é que, se a paz é contagiosa, a guerra, a agressão, o confronto, não o são menos. Há um certo mecanismo automático na engrenagem da paz, como na comunhão dos santos, pela qual os méritos são reversíveis e o efeito pacificador de um ato termina às vezes por fazer-se sentir onde menos se espera. Quem imaginaria, por exemplo, que o fim da implacável disputa ideológica da Guerra Fria acabaria por contaminar positivamente um conflito que, em aparência, nada tinha a ver com ela, desmontando inesperadamente o apartheid da África do Sul? Da mesma forma, nos 11 breves anos entre a queda do muro de Berlim e os atentados terroristas de 11 de setembro, muitos problemas desesperadamente encruados encontraram remédio pacífico surpreendente além do apartheid, a divisão da Alemanha, a transição democrática dos regimes comunistas na Europa Central e Oriental, a dissolução sem sangue nem vinganças da URSS, a guerra civil no Camboja, em Moçambique, a guerrilha na América Central. Dos que sobraram -Oriente Médio, Coréia, Cachemira, Taiwan-, alguns dos mais perigosos pareciam estar encaminhados em processo difícil, mas progressivo, de negociação, cujo exemplo mais notável foi o de Oslo entre israelenses e palestinos. Hoje, contudo, em toda a parte, na Tchetchênia e na Palestina, na Coréia ou na Cachemira, as feridas se reabrem, os conflitos se reaproximam do ponto de explosão. Não se trata de conjugação dos astros, nem de mera coincidência. É que a estratégia de antagonismo e confrontação dos super-poderosos, a opção de privilegiar as divergências, não os pontos de interesse comum, espalhar-se qual tinta em mata-borrão. Em cada um dos focos infeciosos do globo, os violentos, os partidários da guerra sentem-se encorajados pelo prestigioso exemplo dos grandes e deles esperam, se não compreensão e apoio, ao menos tolerância e silêncio cúmplice.
É por isso que a prioridade dos nossos dias não é mais apenas a denúncia de uma globalização perversa, mas a recusa da engrenagem da guerra e a reafirmação da paz, novo nome do desenvolvimento. Em "A Forma Secreta", Augusto Meyer evocava, a propósito do pitoresco desafio lançado em Roma, na Páscoa de 1536, por Carlos 5º a Francisco 1º, o comentário de Salvador de Madariaga, que via no discurso "algo de viento de locura", como o que sopra em nossos dias. Como se lesse das páginas do Quixote, o imperador provocava: "Por lo tanto, yo prometo a ustedes, delante deste sacro colégio (...) si el rey de Francia se quiere conducir conmigo en armas de su persona a la mia, de conducirme con él armado, o desarmado, en camisa, con espada o puñal, en tierra, o en mar, en un puente, o en isla, en campo cerrado, o delante de nuestros ejercitos, o doquiera, o como quiera él, guerrá y justo sea". Depois de prometer que, no dia seguinte, partiria para a Lombardia, "adonde nos prepararemos para rompermos (...) las cabezas," terminava enfaticamente com as palavras que faço minhas nos albores da esperança de um novo ano: "...y con esto acabo diciendo una vez y tres: que quiero paz, que quiero paz, que quiero paz...".


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Tendências internacionais: Lucro maior não garante recuperação econômica
Próximo Texto: Lições contemporâneas: As quatro frentes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.