São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

São Paulo, capital

LEDA MARIA PAULANI

Os 450 anos de São Paulo, com seu séquito de festas, exposições e discussões, enseja uma pergunta cuja resposta não é trivial. Por que São Paulo explodiu neste conglomerado urbano de 10,5 milhões de habitantes? São Paulo não fica no litoral nem é um paraíso de belezas naturais. A história não fez dela capital do país, nem por obra do acaso nem por obra do planejamento. Então por quê? Que força foi essa que, em pouco mais de um século, produziu uma megalópole do pequeno vilarejo interiorano, que, há mais de 300 anos, posto em sossego pelo difícil acesso, dormitava num planalto a 800 metros do nível do mar?
A força que operou, para o bem e para o mal, esse milagre chama-se capital. Essa lógica, que transcende o arbítrio daqueles que a operam, revoluciona constantemente o meio em que atua. Todo e qualquer espaço deixado inteiramente sob seu domínio torna-se um ambiente de mudança contínua, de abalos e transformações ininterruptas. O café, depois a indústria, agora os serviços fizeram da pequena São Paulo calma e serena, localizada nas bordas de um sistema que é mundial, esse cenário vertiginoso que tonteia os visitantes menos avisados. São Paulo é a objetivação do capital periférico, em sua concretude contraditória de riqueza suntuosa e de pobreza aviltante, de civilização e de barbárie.
Mas esse furor que leva tudo de roldão é a forma dita civilizada de produzir os chamados meios de vida. As levas humanas que a cidade foi atraindo ao longo de sua história recente vieram todas, indistintamente, atrás dessa oferta, que sempre pareceu por aqui abundante. Decorre daí seu tão decantado ecumenismo social, sua capacidade de conter em si raças, línguas, credos e costumes os mais diversos.
Já faz algum tempo que a cidade perdeu essa capacidade. Marx diz que o homem moderno, privado de meios de vida, é um indivíduo abstrato. A abstração de que se trata aqui, portanto, não é um produto ideal do cérebro pensante. É o resultado da realidade material, objetiva. Desprovido de meios de vida, ou seja, de propriedade e de dinheiro, o indivíduo é concretamente, e miseravelmente, abstrato. A autonomia e a independência que ele aparenta revelam aí dolorosamente a ilusão em que se constituem. Ele não é dono e senhor de seu destino, não arbitra sobre a condução de sua vida, apenas sobrevive, e mal, quando consegue.
São Paulo é hoje uma grande usina de produção de indivíduos abstratos. A "generosidade" capitalista da cidade perdeu o fôlego. O vendaval neoliberal que, há mais de uma década, tomou de assalto as periferias capitalistas empilha aqui suas vitórias, mais do que em qualquer outro lugar do país. A continuidade escancarada dessa política pelo governo "democrático e popular" que se instalou no outro planalto pode acabar de vez com o ar e sufocar a metrópole em sua própria barbárie. Se hoje, apesar dos malabarismos oficiais e da beleza de Caetano cantando "Sampa" na São João com a Ipiranga, as comemorações trazem indisfarçável desalento, daqui a 50 anos talvez não haja rigorosamente mais nada o que comemorar.


Leda Maria Paulani, 49, é professora do Departamento de Economia da FEA-USP.

Excepcionalmente, hoje, a coluna de Luiz Carlos Mendonça de Barros não é publicada.


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