São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

O triunfo de Drácula

RUBENS RICUPERO

Em sua nova encarnação, o vampiro deixou o decrépito castelo que, anos atrás, visitei na brumosa Transilvânia. O conde Vlad vive hoje no sinistro edifício Dakota, em Nova York, onde nasceu o bebê de Rosemary. Em vez de sugar o sangue de viandantes incautos, prefere alimentar-se dos suculentos fluxos financeiros extraídos dos países em desenvolvimento.
O título e a abertura deste artigo soam um tanto folhetinescos e sensacionalistas. Que fazer, no entanto, quando a realidade de um sistema econômico enlouquecido é, ela mesma, escandalosa e obscena? Quem duvida consulte as estatísticas das Nações Unidas, baseadas no FMI ("World Economic Outlook", "Balance of Payments Statistics", 2004). Constatará que, a partir de 1998, as economias em desenvolvimento sofreram uma transferência líquida de recursos financeiros de um total astronômico de US$ 1,234 trilhão. É a soma acumulada de sete anos sucessivos de transferências líquidas, que só fazem aumentar, dos US$ 35 bilhões negativos de 1998 aos US$ 312,7 bilhões, quase nove vezes mais, de 2004 (estimativa).
Mais ou menos no meio desse período, março de 2001, a ONU organizou em Monterrey, México, a conferência internacional sobre o financiamento ao desenvolvimento, com a esperança de estancar a hemorragia e inverter o fluxo. Foi pior. Naquele ano, o saldo negativo (US$ 142,4 bilhões) saltou, em 2002, para US$ 196,4 bilhões, explodindo em 2003, para US$ 268,5 bilhões. A conferência de Monterrey, que ouviu mirabolantes promessas dos principais líderes mundiais, partia de postulado do mais óbvio bom senso: sendo as economias em desenvolvimento, por definição, carentes de capital, era contra-senso surrealista que elas estivessem a enviar para o exterior mais recursos do que recebiam, numa espécie de transfusão de sangue às avessas.
Tome-se o caso da América Latina. Até 2001, tínhamos saldos positivos, de US$ 46,5 bilhões, em 1998, declinando gradualmente até US$ 5,2 bilhões no ano da conferência. Desde então, o fluxo se inverte para negativo. De acordo com o último relatório da Cepal, no ano passado, a região transferiu ao exterior cerca de US$ 84 bilhões (4,3% do PIB), mais que o dobro de 2003 (transferência de US$ 34,4 bilhões ou 2% do PIB). Como se chegou à cifra de 2004?
O principal componente do cálculo foi o saldo negativo da balança de rendas, próximo a US$ 66 bilhões. Enquanto o ingresso líquido de investimentos estrangeiros diretos chegou a US$ 40 bilhões (2,1% do PIB), as "saídas por conceito de investimento de carteira e outro capital" (nomenclatura da Cepal) ultrapassaram os US$ 65 bilhões (3,4% do PIB), número que, segundo a mesma fonte, não se havia registrado desde 1980. As saídas atingiram, na Argentina, quase US$ 12 bilhões, e foram de cerca de US$ 14 bilhões no Brasil, US$ 11 bilhões no México e US$ 16 bilhões na Venezuela.
Outro fator que contribuiu ao resultado proveio do fluxo negativo de pagamentos ao FMI, de aproximadamente US$ 5,5 bilhões, dos quais o Brasil entrou com mais de US$ 4 bilhões, e a Argentina, com cifra superior a US$ 1 bilhão.
Há na situação aspecto particularmente perverso. É que a transferência de recursos apenas se tornou possível por causa do êxito de muitas economias em desenvolvimento na geração de vultosos saldos comerciais e em conta corrente. É como se o mundo rico tirasse subrepticiamente com uma das mãos (a sucção de recursos financeiros) o que lhes havia dado com a outra (o saldo comercial e em conta corrente). Por outro lado, como o sucesso comercial é, em larga medida, o fruto da melhoria dos termos de intercâmbio, temos aí outra amarga ironia em torno do tema central das históricas análises de Raul Prebisch e da Cepal. Mesmo naquelas raras ocasiões em que essa deterioração secular se inverte e os preços de nossos produtos se valorizam, em termos relativos, a alegria não dura muito porque misteriosos mecanismos financeiros se encarregam de subtrair-nos os ganhos fugazes.
Tanto isso é verdade que os únicos a registrar modestos saldos financeiros positivos são os africanos e os países altamente endividados (em maioria africanos), isto é, os pobres entre os pobres, os que já não são capazes de produzir sangue para ser sugado.
É compreensível, assim, que os beneficiários dessa (des)ordem estabelecida, os alegres desfrutadores de megadéficits financiados, em parte, por esse processo, neguem validade ao conceito de transferência líquida. Para eles, faz todo sentido que um país pobre envie recursos aos EUA, caso a taxa de retorno seja lá superior à que se obteria no país de origem. Isso pode ser verdade em relação a transferências de europeus e japoneses. Esticando um pouco, até para os asiáticos acumuladores de reservas, sobre os quais se diria que têm poupança em excesso e precisam proteger o valor das moedas.
Mas, para nós, tristes latinos, cronicamente deficitários em poupança, que levantam empréstimo a juros de 10% ou mais para adquirir reservas que só lhes renderão 1% ou 2%, faz sentido? Ou melhor seria chamar isso pelo nome adequado, "as perdas internacionais", conforme diria o governador Leonel Brizola, a cuja quixotesca coerência presto aqui uma derradeira homenagem?


Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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