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OPINIÃO ECONÔMICA
O triunfo de Drácula
RUBENS RICUPERO
Em sua nova encarnação, o
vampiro deixou o decrépito
castelo que, anos atrás, visitei na
brumosa Transilvânia. O conde
Vlad vive hoje no sinistro edifício
Dakota, em Nova York, onde nasceu o bebê de Rosemary. Em vez
de sugar o sangue de viandantes
incautos, prefere alimentar-se dos
suculentos fluxos financeiros extraídos dos países em desenvolvimento.
O título e a abertura deste artigo soam um tanto folhetinescos e
sensacionalistas. Que fazer, no
entanto, quando a realidade de
um sistema econômico enlouquecido é, ela mesma, escandalosa e
obscena? Quem duvida consulte
as estatísticas das Nações Unidas,
baseadas no FMI ("World Economic Outlook", "Balance of Payments Statistics", 2004). Constatará que, a partir de 1998, as economias em desenvolvimento sofreram uma transferência líquida
de recursos financeiros de um total astronômico de US$ 1,234 trilhão. É a soma acumulada de sete
anos sucessivos de transferências
líquidas, que só fazem aumentar,
dos US$ 35 bilhões negativos de
1998 aos US$ 312,7 bilhões, quase
nove vezes mais, de 2004 (estimativa).
Mais ou menos no meio desse
período, março de 2001, a ONU
organizou em Monterrey, México, a conferência internacional
sobre o financiamento ao desenvolvimento, com a esperança de
estancar a hemorragia e inverter
o fluxo. Foi pior. Naquele ano, o
saldo negativo (US$ 142,4 bilhões) saltou, em 2002, para US$
196,4 bilhões, explodindo em
2003, para US$ 268,5 bilhões. A
conferência de Monterrey, que
ouviu mirabolantes promessas
dos principais líderes mundiais,
partia de postulado do mais óbvio bom senso: sendo as economias em desenvolvimento, por
definição, carentes de capital, era
contra-senso surrealista que elas
estivessem a enviar para o exterior mais recursos do que recebiam, numa espécie de transfusão
de sangue às avessas.
Tome-se o caso da América Latina. Até 2001, tínhamos saldos
positivos, de US$ 46,5 bilhões, em
1998, declinando gradualmente
até US$ 5,2 bilhões no ano da
conferência. Desde então, o fluxo
se inverte para negativo. De acordo com o último relatório da Cepal, no ano passado, a região
transferiu ao exterior cerca de
US$ 84 bilhões (4,3% do PIB),
mais que o dobro de 2003 (transferência de US$ 34,4 bilhões ou
2% do PIB). Como se chegou à cifra de 2004?
O principal componente do cálculo foi o saldo negativo da balança de rendas, próximo a US$
66 bilhões. Enquanto o ingresso
líquido de investimentos estrangeiros diretos chegou a US$ 40 bilhões (2,1% do PIB), as "saídas
por conceito de investimento de
carteira e outro capital" (nomenclatura da Cepal) ultrapassaram
os US$ 65 bilhões (3,4% do PIB),
número que, segundo a mesma
fonte, não se havia registrado desde 1980. As saídas atingiram, na
Argentina, quase US$ 12 bilhões,
e foram de cerca de US$ 14 bilhões
no Brasil, US$ 11 bilhões no México e US$ 16 bilhões na Venezuela.
Outro fator que contribuiu ao
resultado proveio do fluxo negativo de pagamentos ao FMI, de
aproximadamente US$ 5,5 bilhões, dos quais o Brasil entrou
com mais de US$ 4 bilhões, e a Argentina, com cifra superior a US$
1 bilhão.
Há na situação aspecto particularmente perverso. É que a transferência de recursos apenas se tornou possível por causa do êxito de
muitas economias em desenvolvimento na geração de vultosos saldos comerciais e em conta corrente. É como se o mundo rico tirasse
subrepticiamente com uma das
mãos (a sucção de recursos financeiros) o que lhes havia dado com
a outra (o saldo comercial e em
conta corrente). Por outro lado,
como o sucesso comercial é, em
larga medida, o fruto da melhoria dos termos de intercâmbio, temos aí outra amarga ironia em
torno do tema central das históricas análises de Raul Prebisch e da
Cepal. Mesmo naquelas raras
ocasiões em que essa deterioração
secular se inverte e os preços de
nossos produtos se valorizam, em
termos relativos, a alegria não
dura muito porque misteriosos
mecanismos financeiros se encarregam de subtrair-nos os ganhos
fugazes.
Tanto isso é verdade que os únicos a registrar modestos saldos financeiros positivos são os africanos e os países altamente endividados (em maioria africanos), isto é, os pobres entre os pobres, os
que já não são capazes de produzir sangue para ser sugado.
É compreensível, assim, que os
beneficiários dessa (des)ordem
estabelecida, os alegres desfrutadores de megadéficits financiados, em parte, por esse processo,
neguem validade ao conceito de
transferência líquida. Para eles,
faz todo sentido que um país pobre envie recursos aos EUA, caso
a taxa de retorno seja lá superior
à que se obteria no país de origem. Isso pode ser verdade em relação a transferências de europeus e japoneses. Esticando um
pouco, até para os asiáticos acumuladores de reservas, sobre os
quais se diria que têm poupança
em excesso e precisam proteger o
valor das moedas.
Mas, para nós, tristes latinos,
cronicamente deficitários em
poupança, que levantam empréstimo a juros de 10% ou mais para
adquirir reservas que só lhes renderão 1% ou 2%, faz sentido? Ou
melhor seria chamar isso pelo nome adequado, "as perdas internacionais", conforme diria o governador Leonel Brizola, a cuja
quixotesca coerência presto aqui
uma derradeira homenagem?
Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo
Itamar Franco).
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