São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Era só o que faltava

ALOIZIO MERCADANTE

Costuma-se dizer que a política externa pouco muda, pois ela reflete interesses de longo prazo do Estado-Nação, e não anseios imediatos de governos. Contudo é possível identificar, na análise histórica da política externa brasileira, momentos de inflexão que conduziram a mudanças paradigmáticas. Desde a política de "alinhamento automático" de Dutra, passando pela política externa independente e o "pragmatismo responsável", as diretrizes da inserção internacional do Brasil tiveram câmbios significativos, alguns profundos. Pois bem, o governo do presidente Lula inaugurou uma nova fase histórica da política externa do país.
De fato, a recuperação do Mercosul, antes praticamente falido; a proposta ofensiva da Alca flexível e adequada aos interesses do país, em contrapartida à atitude meramente protelatória e defensiva anterior; o aprofundamento das parcerias estratégicas e a criação de novas; a defesa altiva do multilateralismo e dos princípios do direito internacional público; a criação do G20, que modificou a correlação de forças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento no âmbito da OMC; afora o sucesso da política de comércio exterior, são elementos que, entre outros, permitem afirmar que o governo Lula vem construindo nova etapa da política externa brasileira. Não houve ruptura, é claro, mas houve, com certeza, salto qualitativo que deu maior consistência e assertividade ao protagonismo internacional do país.
No plano internacional, esse salto qualitativo é plenamente percebido e saudado como fato promissor na luta contra as assimetrias da globalização. Porém no plano interno alguns teimam em não reconhecer os êxitos da nova política externa. Quando o fazem, afirmam que se trata de mera continuidade de diretrizes diplomáticas concebidas no governo passado. Esse tinha como diretriz essencial de política externa a "autonomia pela integração", em contraposição à "autonomia pela distância", que teria balizado a política externa de alguns governos desenvolvimentistas. Essa diretriz pressupunha que a superação da "autarquização desenvolvimentista" e a integração ao processo de globalização levariam, de forma praticamente automática, ao desenvolvimento e à maior autonomia econômica e política do país. Somada à política econômica que realizaria os "deveres de casa" apregoados pelo Consenso de Washington, tal integração nos conduziria à "modernidade".
Não obstante esse credo panglossiano, a realidade é que o governo passado criou um círculo vicioso entre uma política macroeconômica fundada no endividamento externo e na privatização e na venda de patrimônio nacional, que aumentou muito a vulnerabilidade do país e fez explodir a dívida pública, e uma política diplomática e de comércio exterior que resultou em vultosos déficits comerciais e na fragilização dos interesses nacionais no cenário mundial. Não houve, portanto, maior integração, muito menos maior autonomia.
Em contraste, o novo governo vem conseguindo gerar um círculo virtuoso entre a política econômica que reduz a vulnerabilidade externa e a dívida pública; e a política externa e de comércio exterior que produz generosos superávits e afirma, de modo soberano, os interesses nacionais no cenário mundial. Trata-se, ao nosso ver, de diferença fundamental em relação ao governo passado, que resulta de concepção distinta de Estado e de compromisso político firme com o crescimento econômico e a inclusão social.
As gritantes evidências das diferenças e dos êxitos da nova política externa talvez expliquem a ausência de críticas substantivas no debate interno sobre o assunto. Tais evidências talvez expliquem também por que os detratores dessa nova política venham restringindo-se ao protesto ante o acessório. O substantivo em diplomacia é saber identificar os interesses nacionais e projetá-los, de forma assertiva, no cenário mundial. E isso o governo Lula, diferentemente do anterior, vem fazendo de modo exemplar.
A grande projeção internacional de um presidente monoglota como Lula talvez incomode os que desfilam com fluência idiomática, mas sem influência real, pelo "circuito Elizabeth Arden". Contudo não podemos deixar que tal incômodo obscureça a avaliação objetiva da nova política externa e desvirtue o debate interno sobre o tema. Querer negar os claros sucessos da nova política externa ou atribuí-los à mera continuidade de gestões anteriores é falta de honestidade intelectual. Em bom português: era só o que faltava.


Aloizio Mercadante, 50, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e líder do governo no Senado.
Internet: www.mercadante.com.br

E-mail -
mercadante@mercadante.com.br


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